“Reencontro” é um conto de Orígenes Lessa sobre dois soldados,
ex-amigos de infância, que se reencontram anos depois no exército,
preparando-se para a guerra (é a Revolução Constitucionalista de 1932, dos
paulistas contra o governo de Getúlio).
Os dois foram colegas de internato, onde um deles sofreu bullying constante, inclusive por parte
do narrador. Agora, soldados no mesmo batalhão, tornam-se novamente amigos. E o
narrador lembra suas conversas com o outro, Julinho, nos tempos de internato.
Fingi não perceber, mudei bruscamente de interesse:
– É Sherlock Holmes?
Julinho hesitou, teve um olhar de náufrago para o fascículo que trazia
na mão.
– Não. É Nick Carter.
– É bom? É melhor do que Sherlock?
Os olhos de Julinho se adoçaram. Confraternizamos naquele encontro
inesperado. Ele já tinha lido todos os fascículos de Sherlock, já havia lido
dez ou doze de Nick Carter. Mas ia acabar com aquela besteira de livro
policial. Agora ia ler somente grandes escritores, Taunay, Alencar, Machado de
Assis.
Li esse conto justamente no auge da minha fase Sherlock
Holmes, por volta dos 12 ou 13 anos, e esse trecho me marcou como um pequeno
gesto de bullying do autor contra
mim, pessoalmente. Era como se ele estivesse dizendo: “Não perca seu tempo
lendo essas besteiras. Leia os grandes autores.”
Eu já tinha lido pelo menos Machado de Assis, nessa época,
e com alguma teimosia considerei que não tinha nada de mais continuar a ler tanto
Machado quanto Conan Doyle pelo resto da vida. E estava certo.
O próprio Orígenes Lessa cultivou a literatura popular, e
não foi pouco. O conto “Reencontro” estava incluído na coletânea A Desintegração da Morte, o primeiro (e
único) livro de autor brasileiro na antiga Coleção Futurâmica, das Edições de
Ouro.
Lessa foi, como alguns autores da sua geração e muitos da
minha, um autor dividido entre a literatura “alta” e a “baixa”. Como definir
essas duas? Uma definição meio irreverente pode dizer assim: literatura alta é a que os pais e os
professores nos obrigam a ler, e literatura
baixa é a que a gente lê porque gosta.
Qualquer livro pode se tornar chato e insuportável se
introduzido num momento não muito bom. Depende de muita coisa. Alguns autores
que me impingiam no curso ginasial eu fiqei com trauma, só consegui ler de novo
depois dos cinquenta anos. Por outro lado, ali eu já lia coisas que poucos dos
meus colegas liam também – Sherlock Holmes, por exemplo. Gibi todo mundo lia os
mesmos, mas livro era muito pouco. E nessa época eu já comprava metros lineares
de livros de bolso todo mês.
Jorge Luis Borges dizia que “ninguém deve continuar a ler
um livro, se o livro não lhe dá prazer”. Eu acho que Borges, se não foi o
melhor escritor, possivelmente foi o maior leitor do século 20; mas essa
primazia do prazer deve ser vista talvez como uma tentativa dele de suavizar o
catastrófico senso do dever que assombra alguns povos. Ler pela alegria das
revelações trazidas pela leitura.
A frase é verdadeira e paternalística. Porque não é só o
prazer. Muitos livros são lidos por um confronto intelectual entre leitor e
autor, e embora isso possa lhes ser prazeroso é um prazer exigente, que cobra
um preço. Um livro pode ser um desafio, pode ser um enigma. Pode ser um estado
alterado de consciência. O prazer é um efeito colateral secundário, embora bem
vindo.
Durante esse meu tempo do Ginásio, minhas leituras,
inclusive ficção científica, não tinham nada a ver com o que eu estudava no
colégio. Eram dois mundos à parte. Eu gostava muito de ler, e no colégio tinha
uma curiosidade natural por muitos assuntos, como história, língua portuguesa.
Minhas nêmesis eram a matemática e o desenho geométrico. Curiosamente, duas
coisas que eu aprendi a gostar depois.
Fora das exigências do colégio, ou em outras palavras,
terminado o dever de casa, eu ia ler livros de FC da Argonauta, ou poesia
parnasiana, assunto permanente do meu pai, ou as revistas que eu colecionava,
como MMEQ, X-9, Meia Noite, Suspense, etc.
Se há muita distância entre os livros da escola e os
livros que os alunos leem com gosto... Então, mais um motivo para que a escola,
sem abrir mão do seu repertório, peça para eles trazerem o deles. Vamos
discutir na escola isso que os mobiliza tanto. Isso é literatura? Por que? Isso
é arte? Como assim? Romance policial pode ser considerado alta literatura? Hip-hop
é poesia?
Para um garoto ou uma garota deve ter um certo impacto ver
as regras essenciais da arte sendo explicadas com a ajuda de exemplos tirados
do mundo dele, do leitor, e não de um super-mundo acadêmico, intelectual,
pomposo, cheio de palavras difíceis. O acesso a esse mundo (que tem lá suas
vantagens) começa de casa.
É o que chamam de representatividade, é o que eu sinto quando
estou lendo um livro e no meio do texto salta a palavra, sei lá, Campina Grande. É meio idiota dizer isso
em plena aldeia virtual, mas é uma espécie de atestado de existência.
Quando uma leitora consegue abrir um livro e a certa
altura virar uma página e ver o personagem chegando ao bairro onde ela mora,
passando de ônibus pelo mesmo, o bairro fica mais real naquele instante. É como
ter sido certificado, carimbado, existência reconhecida. Nossa cabeça é assim.
Não existe nem alta nem baixa literatura, pelo menos
nesse sentido “camarote vs. platéia”. Existem diferentes experiências mentais
que se pode acessar com a leitura de livros, e algumas nos parecem mais
prioritárias do que outras. Existem livros mais complexos e livros mais
simples, mas não é esta a questão. Existem livros que divertem e livros que
fazem pensar, mas a questão também não é esta. A experiência da leitura é única.
Os números coletivos, as estatísticas, têm importância para definir estratégias
de mercado, políticas públicas, etc. Mas
cada leitura é única.
Existem cientistas tão mergulhados em seus problemas de
pesquisa que mal conseguem tirá-los da cabeça, não ouvem uma música, não leem
um livrinho, não saem para passear, não gostam de cinema. Isso é um extremo. O
outro extremo é o pessoal que gosta de entretenimento, vive em busca de
entretenimento, e se recusa a manter qualquer tipo de atitude diante de qualquer
coisa que não seja a atitude de “eu vim aqui para me divertir, qualquer coisa
que me exija mais esforço é uma [colocar expletivo do momento]”.
Toda esta lenga-lenga não tem partidarismo literário. Por
exemplo: gosto de Sherlock Holmes mas nunca li muita coisa de Nick Carter, nem
me interessei. Então talvez eu não seja um aficionado. Por outro lado, o
personagem de Orígenes Lessa, naquele conto do começo, cita como exemplos de “alta
literatura nacional” o Visconde de Taunay, de quem meu pai admirava A Retirada da Laguna; cita José de
Alencar, que confesso que nunca foi o meu forte; e por fim Machado de Assis,
que acabei conhecendo melhor e apreciando mais. Então, nem todo aquele esforço
se perdeu.