terça-feira, 15 de dezembro de 2009

1429) Esnobando a loteria (12.10.2007)




Dizem os céticos que o dinheiro não traz a felicidade. Outros, mais céticos ainda, afirmam que, por uma questão de Justiça Cósmica, a felicidade repele o dinheiro. Seria injusto para com o resto da Humanidade você ser rico e feliz ao mesmo tempo. Vai ter que escolher. 

Há casos em que um sujeito já é feliz, tem tudo que que precisa, mas, como não tem dinheiro, se mete em mil e uma empreitadas onde vislumbra a possibilidade de riqueza. No fim, joga a felicidade no lixo, fica sem uma e sem a outra. Melhor nem tentar, porque são incompatíveis. Não se pode ter as duas ao mesmo tempo.

No mês passado, esta questão filosófica foi recolocada em termos práticos quando um alemão recusou um prêmio de loteria de mais de 7 milhões de reais. O cidadão teve seu bilhete premiado e ao receber a notícia dirigiu-se à administração da Loteria, em Hanover, para dizer que não queria receber o prêmio. 

Seus argumentos são poderosos. Ele tem 70 anos, está aposentado, não tem dificuldades financeiras (é um aposentado europeu, não esqueçam). A mulher já morreu, e ele não tem filhos ou parentes próximos. Em suma: não tem muito o que fazer com tanto dinheiro, e confessa ter comprado o bilhete da aposta por uma mera questão de hábito.

Este episódio permite várias leituras. Na primeira, admiramos o desprendimento, o espírito Zen desse sujeito capaz de dispensar semelhante riqueza. Contemplando a vida do alto de seu Everest etário, o indivíduo descortina paisagens amplas, horizontes metafísicos, e não vai desperdiçar os anos de paz que lhe restam envolvido em querelas com gerentes de Banco, advogados, corretores da Bolsa, herdeiros remotos ou sei lá o que mais.

Outra leitura nos diz que o cidadão é um asno. Tudo bem que ele não queira o dinheiro para si. Mas sem dúvida ele conhece alguém que precise. Poderia aceitar o dinheiro e reparti-lo entre creches, hospitais, bibliotecas. Ou doá-lo a uma orquestra sinfônica local, já que ele é alemão. Ou ao time de futebol de sua preferência. Que diabo, será que esse velho é tão obtuso que não lhe ocorre nenhum destino útil para esse dinheiro todo?

Mas na mesma matéria fico sabendo que isto ocorreu na cidade de Hameln, na região da Baixa Saxônia, cidade que não é outra senão a popularíssima Hamelin, da história do Flautista que livrou a cidade dos ratos e, depois que as autoridades se recusaram a pagar o prêmio combinado, levou consigo todas as crianças e as escondeu numa caverna da montanha próxima. 

De imediato me veio ao écran da mente a imagem de um velho, não de 70, mas de 700 anos, caminhando devagar pelas ruazinhas da cidade, esperando um pagamento que lhe foi prometido mas que nunca chegou. 

Quem sabe a loteria foi um meio que o governo (ou o anônimo Destino) escolheu para liquidar a dívida e resgatar as crianças que há 7 séculos estão à espera, numa caverna da montanha? “Agora não posso mais trazê-las,” diz o velho, “perdi a embocadura da flauta”.





1428) “Novecentas Avós” (11.10.2007)




R. A. Lafferty é uma espécie de Hermeto Paschoal da ficção científica norte-americana, um sujeito com grande cultura clássica, com uma identificação profunda com o folclore e a literatura oral dos EUA, e que se vale da FC para contar umas histórias extravagantes, improváveis, às vezes hilariantes, que são um bem-vindo contraponto ao excesso de lógica cartesiana que acomete o gênero. 

No conto “Nine Hundred Grandmothers” Lafferty fala de um grupo de exploradores terrestres num asteróide habitado, onde eles atuam como representantes comerciais ou coisa parecida. 

O protagonista, Ceran, é um cara que se interessa mais pela cultura local do que por transações comerciais. Ele vive intrigado com o fato de os Proavitoi (como se chamam os nativos) terem em suas casas uma espécie de “bonecas vivas”, que andam, falam, etc. O chefe da expedição lhe dá ordens para que pesquise melhor esse aspecto – quem sabe as bonecas não são um produto interessante para ser vendido na Terra?

Ceran interroga seu intérprete local. Pergunta sobre a morte, e fica pasmo ao ouvir: “Nós não morremos”. Ele insiste, e o Proavitoi acha graça: “Olhe, meu amigo... acho que se morrêssemos, seríamos os primeiros a saber”. 

O interrogatório prossegue. Ceran fica sabendo que os Proavitoi não morrem com o passar dos anos; apenas sofrem uma perda de energia e vão sendo guardados pelos seus descendentes em casa, onde mergulham numa espécie de hibernação. 

Quando um Proavitoi atinge a maturidade (ou seja, quando completa dez gerações de descendentes mais jovens) ele tem o direito de participar do Grande Ritual, que ocorre uma vez por ano. É quando os antepassados são despertados do seu sono e contam aos mais novos o princípio de tudo, quando o mundo começou.

Os Proavitoi são especialistas em certos aspectos da biologia. Parecem ser capazes de expandir ou contrair corpos, como se pudessem fazer as moléculas diminuir de tamanho. Mas Ceran está interessado em saber como começou a história daquela raça, e consegue ser admitido à casa do seu intérprete, depois de descobrir que ele tem aproximadamente novecentas avós ainda vivas. 

Ali ele vai sendo apresentado a pessoas cada vez menores, e descobre que as tais “bonecas vivas” são os próprios avós e bisavós dos nativos, miniaturizados vivos. 

A certa altura, Ceran desce aos porões da casa, que estão cobertos de prateleiras onde se enfileiram antepassados cada vez menores. Ceran coloca uma dessas avós na palma da mão e lhe pergunta se mais abaixo, nos porões inferiores, as outras são menores do que ela. “Sim,” ela responde; “cabem na palma da minha mão”. 

Ele desce até o último porão, onde as avós não são maiores do que uma abelha. Pergunta-lhes, desesperado, como foi o começo de tudo, o começo de sua raça – mas com sua ansiedade consegue apenas fazê-las rir. E o som das suas risadas “era como o som de um bilhão de micróbios gargalhando”. Uma bela metáfora para o estudo da História.



(ilustração: Edward R. Flynn)



1427) Uma proposta irrecusável (10.10.2007)



Um amigo me disse certa vez, comentando fofocas políticas que circulavam nos bares da época: “Não existem propostas irrecusáveis. O que existe são indivíduos que vivem com o aceitador aberto.” O conceito de proposta irrecusável lembra um pouco aquela questão científico-escolástica: “O que acontece se derramarmos um solvente perfeito num recipiente invulnerável?” ou “O que acontece quando uma força irresistível se choca com uma barreira impenetrável?” Questões desse tipo são falácias, porque envolvem conceitos que se excluem. Se no universo existe uma força irresistível, então não pode haver uma barreira impenetrável. E vice-versa.

O que acontece quando um indivíduo absolutamente honesto recebe uma proposta (desonesta) irrecusável? A questão aqui é mais sutil. Não estamos lidando com a nitidez dos conceitos científicos, e sim como o universo turvo da mente humana, refletido no espelho embaçado das palavras. Não existe proposta irrecusável. Sempre vai haver um desmancha-prazeres para quem as vantagens da proposta (dinheiro, fama, poder, o que fôr) nada importam, ou importam menos que seus próprios valores. E nem precisam ser valores grandiosos, como nobreza de caráter ou retidão de princípios. Basta ser o Ego. Tem sujeito que recusa uma proposta irrecusável só para humilhar o proponente, só para dizer: “Dane-se. Sou melhor do que você”.

Uma maneira diplomática de recusar uma proposta é cobrar um preço absurdo. O sujeito me oferece um emprego com salário de 2 mil reais. Como eu não quero recusar assim, “na lata”, digo que só iria por 10 mil. No outro dia ele me telefona, diz que consultou o Conselho Diretor ou coisa parecida, e que tudo bem, dez mil. E agora? Existe uma saída meio cara-de-pau, que é dizer: “Olha, Anacleto, se você aumentou de dois para dez com essa facilidade, então pode muito bem me pagar vinte. Só vou por vinte”. O que não resolve o problema, porque talvez ele volte a concordar.

Propostas irrecusáveis sempre envolvem dinheiro. Esse conceito foi criado por pessoas que têm muito dinheiro para tentar convencer a nós, que o temos quase nenhum, de que o dinheiro tudo pode. Digamos que um conhecido meu, esborrotando de rico, me chama para ir tocar violão na festa de aniversário dele. Eu digo, “Ora, Fulano, vai te catar, sou um homem ocupado”. Ele diz: “Cem mil reais, ‘cash’, à vista”. E agora? O cara pode gastar isso sem nem piscar o olho, e está falando sério. Vou ou não vou? Talvez não fosse, só pra desmoralizar o Capitalismo.

A vida empresarial e política está cheia de propostas irrecusáveis. Não o são porque envolvam fortunas fabulosas, mas porque são propostas feitas no momento certo ao indivíduo que está com a aceitação engatilhada. O proponente hábil sabe que em certas portas não adianta bater. A proposta irrecusável é aquela que ele já sabe ter sido aceita antes de ser formulada, e o valor financeiro é uma mera cortina de fumaça para desviar as atenções.

1426) O que faz escrever (9.10.2007)




Todo escritor se depara de vez em quando com a obcecada pergunta: “O que o faz escrever? Ou seja, qual a sua principal motivação enquanto escritor?” 

Se fizéssemos a pergunta equivalente a um camioneiro, a um alpinista, a um político, a um médico, talvez encontrássemos algumas das respostas que os escritores nos dão. 

Assim como um camioneiro, um escritor gosta de tentar reunir o máximo de duas coisas antagônicas: liberdade e responsabilidade. Ele gosta dos grandes espaços abertos (do espírito, no seu caso), do desafio constante de ir a lugares onde nunca foi, da excitação de rever lugares onde passou muito tempo atrás, e durante todo o tempo sentir-se responsável por algo muito valioso que não lhe pertence (uma tradição literária) mas da qual ele é, naquele instante do seu trabalho, o único defensor e guardião.

Assim como um alpinista, o escritor é seduzido pela possibilidade de ser O Maior, de atingir alturas que os seres humanos comuns nunca alcançaram. Ele sabe que quanto mais sobe mais seu raciocínio fica inebriado pelo ar rarefeito; que corre o risco de morrer de solidão e de frio; que um passo em falso pode precipitá-lo no abismo. Mas ele sempre acredita que pode dar mais um passo, ou seja, que pode escrever mais uma página. 

Um político dirá que tem uma responsabilidade para com um grupo de pessoas que acreditam nele, acreditam na sua capacidade de fazer coisas importantes e de melhorar o mundo. Pouco importa se o mundo tem sido muito pouco melhorado, seja por políticos, seja por escritores. O importante é achar que, se há ainda muita coisa a ser feita, nada melhor do que alguém candidatar-se a fazê-la.

Enfim: cada profissional tem razões múltiplas para fazer o que faz, mas ao que parece é apenas aos escritores que se faz essa pergunta. Parece que seguir qualquer profissão é algo óbvio, cuja necessidade não precisa ser explicada, mas ser escritor é uma missão misteriosa, desnecessária e que deve ser justificada tintim-por-tintim..

Talvez a melhor resposta, para qualquer profissão, seja: faço isto por que gosto, e porque é o que sei fazer melhor. Jogadores de futebol dizem isto o tempo inteiro: “Sou um sujeito de sorte, porque me pagam um bom salário para que eu faça a coisa que mais gosto”. Ninguém pergunta a um jogador por que motivo ele joga. Pressupomos que ele descobriu em si mesmo aquela habilidade, e que não viu motivo para se dedicar a outra coisa.

Com um escritor dá-se o mesmo. Ele descobriu muito cedo que 1) gosta daquilo; 2) sabe fazer aquilo bem; 3) vê naquilo a possibilidade de juntar duas coisas importantes, o útil e o agradável, ou seja, uma profissão que lhe dê sustento e uma atividade prazerosa que lhe dê algum tipo de realização pessoal. 

Escritores, no entanto, criam para si mesmo a imagem de alguém que sabe respostas secretas e bombásticas sobre as perguntas mais banais. Podem até saber, mas a resposta que melhor os explica é esta aqui acima, a mais banal de todas.