domingo, 29 de janeiro de 2017

4204) Zé Agra e a Máquina Arrasadora (29.1.2017)




Fiquei sabendo na tarde deste domingo, numa mensagem enviada por José Santos, o “Super-Zé” do futebol paraibano, do falecimento de José Agra, ex-presidente do Treze nos idos de 1974-75.

Zé Agra foi nosso presidente no ano do Cinquentenário (1925-1975) e marcou seu nome na história do Galo. Não somente por isso, nem pelo título de Campeão Paraibano de 1975 (dividido, num desses confusos tapetões do nosso futebol, com o Botafogo de João Pessoa), mas por uma das grandes arrancadas da história do alvinegro, que saiu de uma crise tremenda para se tornar vice-campeão estadual em 1974.

O campeonato daquele ano teria 4 turnos. O Campinense foi campeão dos três primeiros, já estava com a mão na taça. Tinha um ótimo time, e além do mais tinha a sua sempre eficientíssima equipe extra-campo trabalhando nos bastidores (juiz nenhum escapava). O Treze estava com salários atrasados e em crise quando Zé Agra assumiu a presidência, dias antes da estréia no quarto turno.

O novo presidente rodou o chapéu nas ruas João Pessoa e João Suassuna, saldou as dívidas (principalmente com os salários dos jogadores), e desencadeou uma campanha publicitária como nunca se viu no futebol paraibano.

Encorajado pelas primeiras vitórias (time com o bolso em dia corre mais; é uma coisa impressionante) ele emburacou numa série de entrevistas em que definia o time do Galo como “a Máquina Arrasadora do Futebol Paraibano”, o “Time de Gigantes”, etc.  

Afirmava que a torcida do Campinense era mixuruca, cabia numa carroça de burro. Com seu sotaque inconfundível (“o Treze é o maior time de futibó do mundo!”), ele levava nossa torcida à euforia e as torcidas adversárias à loucura.

Folclórico, falastrão, bem humorado, Zé Agra deu uma sacudida brusca num campeonato que já parecia decidido. As rendas dobraram. A torcida lotava todos os jogos (digo isso porque assisti todos).

Duas vitórias épicas seguidas deram ao Galo o título de campeão do quarto turno: 1x0 no Campinense (com gol de Marcos Itabaiana, que após o lance foi agredido com um soco e teve que ser hospitalizado) e 2x1 no Botafogo, no Estádio de Graça, em João Pessoa (gols de Fernando Canguru e Vandinho). E a gente lá, bandeiras e taróis em punho.

Tá cheio de gente aí que se lembra disso como se tivesse sido ontem.

Fomos para um jogo extra onde o Campinense, que jogava por um empate, venceu por 2x0 e se sagrou campeão de 1974.

No ano seguinte, Zé Agra formou uma equipe fantástica, um dos melhores times que o Treze já teve. Como técnicos, passaram por lá o ótimo Virgílio Trindade (ex-Nacional de Patos), o craque Miruca (ex-Náutico, ex-São Paulo) e o argentino Dante Bianchi.



Nessa época eu trabalhei por uns seis meses na secretaria do Treze, onde exercia as funções de datilógrafo, redator de contratos e pagador de vales, bichos e salários ao elenco. Zé Agra foi um dos patrões mais voluntariosos para quem já trabalhei. Toda dúvida eu corria para o centro da cidade, ao escritório dele no edifício Lucas. “Zé, a Federação exige o documento tal pro jogo de amanhã”. “Isso é frescura,” dizia ele, “precisa não.”

E tome uma noite em claro, ardendo em febre, pensando que no dia seguinte o Treze ia perder os pontos para o Santa Cruz de Santa Rita porque faltava o diabo do papel. Nunca aconteceu, mas os cabelos brancos continuam todos aqui.

Foi de Zé Agra a iniciativa de criar a Comissão dos Festejos do Cinquentenário do Treze, presidida por Hélio Soares, meu ex-professor no Colégio Estadual da Prata. Resolvemos fazer uma revista “pra desmoralizar a concorrência”, no caso o Campinense, que acabara de fazer uma revista comemorativa.



Meu pai e eu tomamos a frente na tarefa de redigir e pesquisar a revista. Cavani Rosas, artista plástico do Recife, morava em Campina na época: ele diagramou e ilustrou a revista inteira, e foi o criador do famoso Galo de chuteiras que ainda hoje ilustra tanta coisa relativa ao Treze. Eu vi esse galo sendo criado na prancheta da casa onde ele morava, em Bodocongó, vizinha à UFPB. Também se envolveram na revista José Umbelino Brasil, Rômulo e Romero Azevedo, Roberto Coura (fotógrafo) e outros.



Zé Agra rodava Campina pra cima e pra baixo no seu fusquinha. Eram os tempos heróicos em que cartolas botavam dinheiro do próprio bolso para pagar as dívidas do time, fosse material esportivo, com Fuba Véi da Casa Sport, fosse na lanchonete de Vamberto, perto da Praça do Trabalho.

Fiquei sabendo hoje da despedida de Zé Agra e encontrei aqui, no imprescindível saite RetalhosHistóricos de Campina Grande, um valioso áudio de mais de 1 hora com Zé Agra rememorando esses tempos e me produzindo um nó na garganta. Saudade de um tempo em que eu era tão inocente da realidade do mundo que torcia por times de futebol.

Um brinde ao nosso eterno presidente, Zé Agra, “trezeano autêntico”.






quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

4203) O cantador João Paraibano (26.1.2017)



Estou por aqui, me entretendo com a leitura vagarosa de João Paraibano, o Herdeiro dos Astros (Teresina: Gráfica e Editora Halley, 2016), coletânea de versos e de depoimentos organizada por Ésio Rafael, Marcos Passos e Santanna O Cantador, em homenagem ao grande repentista, amigo de todos nós, falecido em 2014.

Conheci João Paraibano por ocasião do II Congresso Nacional de Violeiros de Campina Grande, em 1975, quando ele cantou duplado com um dos seus parceiros mais constantes, Sebastião Dias. Naquele Olimpo de repentistas no auge da arrancada para o sucesso, e que eu estava encontrando pela primeira vez, João não se destacava. Era tranquilo, baixinho, meio tímido, ainda mais jovem do que eu, e ficava em segundo plano diante de presenças mais vigorosas.

Foi somente com o passar dos anos, a repetição dos Congressos, e as noitadas em pé-de-parede que se prolongavam após as disputas, que pude vê-lo cantar mais solto, mais confiante, agigantando-se por trás da viola, ficando do tamanho dos versos que fazia.

No mundo dos cantadores existem várias divisões informais, tipo “os que são isso, os que são aquilo”. Uma dessas divisões é: “Os que cantam leitura, e os que cantam sentimento”. (Claro que qualquer bom repentista canta as duas coisas; essa divisão aponta apenas a ênfase de cada um.) João era um cantador de sentimento, de observação da natureza, de conhecimento das minúcias da vida no sertão, da compreensão psicológica das atitudes do homem, da mulher e da criança sertaneja.

O livro organizado pelos três poetas faz uma recolha valiosa de grandes improvisos, grandes glosas e episódios pessoais, além de uma série de testemunhos de amigos e parentes.  João está inteiro ali, mesmo descontando-se a tendência sertaneja para a hipérbole sentimental.

Meu parceiro Cavani Rosas, que naqueles idos de 1975 morava em Campina Grande e acompanhava os congressos de cantadores, fez a capa e as belas ilustrações a bico-de-pena do livro, que traz ainda um “porta retratos” de fotos de João, sua família, suas cantorias.

Muitos versos de João, para mim, surgem naquele território poético da observação da natureza e da paisagem humana, dos costumes, dos pequenos gestos das pessoas. Um simples registro, um flash, mas numa concentração poética semelhante à do haikai japonês, capaz de em três linhas evocar uma paisagem física, uma estação do ano, um momento de introspecção e meditação por parte do poeta que observa.

Alguns versos de João Paraibano:

Ainda lembro do cheiro
que minha mãe dava n’eu
da cor da primeira nota
que meu padrinho me deu
eu não peguei com vergonha
papai foi quem recebeu. (pág. 120)
Veja-se a delicadeza psicológica desse verso: o carinho materno misturado à lembrança de um momento em que o menino é admitido no mundo adulto dos homens, onde circula o dinheiro. E o fato do menino lembrar a cor da nota, não o valor. E a fluência dessas duas expressões tão nordestinas: “cheiro”, “com vergonha” (=encabulado, constrangido).

Quem vive numa prisão
leva a vida no desprezo
pede uma esmola a quem passa
nas mãos um cigarro aceso
pernas do lado de fora
e o resto do corpo preso. (pág. 98)
Aqui é a observação do comportamento social. Em Campina Grande eu já morei vizinho à Casa de Detenção (no apartamento que minha tia Adiza tinha na Praça Félix Araújo, no Monte Santo). Esta é uma foto precisa de como os presos passavam o dia: sentados no peitoril da janela gradeada, com as pernas para fora, e tirando onda, por cima do muro, com quem passava na calçada.

Fiz capitão na bacia
de feijão verde e farinha
quando o angu tava feito
mãe saía da cozinha
subia em cima da cerca
dava um grito e papai vinha. (pág. 49)
“Capitão” é o que na minha casa chamavam de “raposa”: feijão e farinha amassados juntos na mão, formando um bolo compacto para ser comido com a mão mesmo. E esse detalhe da mãe subindo na cerca para gritar pro marido (no roçado) que o almoço está pronto só me lembra uma cena de filme de Kurosawa ou de Andrei Tarkovsky.

Ao passar em Afogados
diga a minha esposa bela
que derramei duas lágrimas
sentindo saudades dela
tive sede, bebi uma
e a outra guardei pra ela. (pág. 54)
Aqui vale mais uma vez a delicadeza da imagem, a lágrima guardada para a mulher querida, como algo minúsculo e precioso. 

Meu passado foi assim
comendo juá banido
o vento dando empurrão
no lençol velho estendido
com tanta velocidade
que mudava a qualidade
que a tinta dava ao tecido. (pág. 123)
“Banido”, em nordestinense, é “estragado” – juá é tipicamente uma frutinha que se esparrama com exagero pelo chão, e as crianças acabam comendo qualquer um. A impressão visual da imagem do lençol sacudido pelo vento é o que Ezra Pound chamava de “fanopéia”, a evocação vívida, com palavras, de uma impressão visual. É uma variante e um enriquecimento do famoso verso de Manuel Xudu sobre o pião “que roda na ponteira / com tanta velocidade / que muda a cor da madeira”.

Vou pro meu sertão antigo
pra ver tapera sem centro
ver minha mãe na cozinha
cortando cebola e coentro
botando um prato no pote
pra não cair mosca dentro. (pág. 70)
Numa sextilha de rimas limitadas (“...entro”), o poeta retrata com simplicidade a cozinha de casa de sítio, o pote de barro com água num recanto. Geralmente coberto com uma tábua ou bandeja, com copos emborcados em cima; mas João enriquece a imagem ao supor um pote sem tampa que a mulher cobre mesmo assim com um prato qualquer.

Toda noite quando deito
um pesadelo me abraça
meu cabelo que era preto
está da cor da fumaça
ficou branco após os trinta
eu não quis gastar com tinta
o tempo pintou de graça. (pág. 124)
Aqui, vale a naturalidade com que “tinta” é rimado com “trinta”, e o tom grisalho (olha a fanopéia) é sugerido pela “cor de fumaça” em contraste com o “preto”. O verso bom é o verso simples em que tudo parece inevitável, parece que aquelas palavras sempre andaram umas junto das outras, e mesmo assim se conjugam de repente para produzir uma imagem pequena, mas nítida, concisa, memorável.












domingo, 22 de janeiro de 2017

4202) Os checkpoints da vida (22.1.2017)



(ilustração: Christian Pierce)

Uma das coisas boas de ler vários livros ao mesmo tempo é que às vezes a gente tem a sensação de estar lendo uma história só, que vai passando por diferentes narradores.

Pois bem: estava eu lendo uma noveleta de Ted Chiang, The Lifecycle of Software Objects (2010). É a história de um grupo de programadores envolvidos na criação de digientes, criaturinhas virtuais que se comportam como personagens de videogames, mas têm inteligência própria, dialogam com os programadores, evoluem por conta própria.

Os personagens de Chiang começam a criar esses digientes como se fossem animaizinhos de estimação, mas logo veem neles algo como crianças humanas, porque são (com certas limitações, pois são inteligências sem corpo biológico) capazes de pensar, sentir emoções, fazer planos para o futuro, ter curiosidade pelo mundo.

A certa altura do processo, aliás, os pesquisadores conseguem fazer o upload dos digientes para os corpos de pequenos robôs dotados de sensores táteis, o que permite aos digientes sair do computador e andar pelo nosso mundo físico, experimentando texturas, tendo a noção de um espaço tridimensional, etc.

Surge então um episódio em que dois digientes, Marco e Polo, pegam uma briga feia e ficam zangados um com o outro. E eles pedem a Derek, o seu programador, que os remeta de volta ao “ponto de recuperação” (checkpoint) anterior à briga, para que ela possa ser apagada de suas memórias.

O checkpoint é um recurso que temos no computador. Às vezes eu quero fazer no sistema uma mudança muito arriscada, que pode dar zebra. Tipo instalar um programa novo, muito complicado. Por precaução, faço o sistema “tirar uma foto” do seu estado completo nesse momento. Este será o checkpoint. Depois, instalo a novidade. Deu zebra? Peço para voltar ao ponto de recuperação, e – abracadabra!  Meu computador está igualzinho ao que era antes do problema.

Os digientes têm consciência disso, sabem que pode ser feito. E fazem seu pedido a Derek, quando este liga o computador e acessa a plataforma.

Os dois digientes desde então mal se falam, de modo que Derek sente um certo alívio quando eles vêm procurá-lo, juntos.
- É bom ver vocês dois juntos de novo. Fizeram as pazes?
- Não! – diz Polo. – Zangado ainda.
- Lamento ouvir isso.
- A gente quer ajuda – diz Marco.
- Muito bem. Em quê?
- Que leve a gente para semana passada, antes da briga.
- O quê?! – Essa é a primeira vez em que ele vê um digiente pedindo para ser levado de volta a um ponto de recuperação. – Por que querem isso?
- Não quero lembrar a briga grande – diz Marco.
- Quero ficar feliz, não quero zangado – diz Polo. – Você quer a gente feliz, certo?

Derek não sabe o que fazer. Ele acha que esta seria uma solução muito simplista, e que na verdade os digientes, se querem evoluir como criaturas pensantes e sentintes, precisam aprender a assimilar esses maus momentos, os desgostos, as brigas, as tristezas. Não é assim que os humanos fazem?

Eu estava nesse ponto (meu texto está no computador, não num livro impresso) quando interrompi a leitura para me deitar um pouco. Os digientes, que não têm corpos biológicos, não sabem que escritores ou programadores de software sexagenários precisam muitas vezes deitar numa cama de verdade para repousar a coluna-prestes.

Eu costumo alternar uma hora sentado no computador e meia hora deitado, lendo, e para isso tenho sempre junto do meu travesseiro dois ou três livros abertos na página certa, para que eu possa retomar a leitura de onde parei.

E nesse dia, mal terminei de ler o trecho acima, deitei e peguei meio ao acaso a Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), de Lima Barreto, e daí a pouco enveredei por este trecho, no capítulo 9, quando o narrador, de nome Augusto Machado, pega um trem para o subúrbio. Machado observa seus companheiros de viagem, escuta sua conversa e começa a achá-los meio ridículos (é um indivíduo solitário, hipercrítico, meio casmurro). E diz:

Deixei de observar os quatro curiosos personagens, virei o rosto e, pela portinhola, pus-me a ver a paisagem, os morros altos e azulados, o verde-claro das campinas, o verde-escuro das encostas, as fagulhas de luz, as hastilhas de alegria no ar, as palmeiras melancólicas... Um dia viria que tudo isso havia de fugir dos meus olhos... Por que não sou assim como aquele barrigudo senhor, inconscientemente animalesco, que não pensa nos fins, nas restrições e nas limitações? Longe de me confortar, a educação que recebi só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado, dando-me ódios e, talvez despeitos! Porque m'a deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos? Ah! se eu pudesse apagá-la do cérebro! Varreria uma por uma as noções, as teorias, as sentenças, as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada da analogia, sem o veneno da análise.

O desejo do narrador de Lima Barreto é o mesmo desejo dos digientes de Ted Chiang: voltar a um ponto de recuperação anterior que preserve uma parte básica de sua mente e memória, mas elimine certas fontes de sofrimento.

Se isto nos fosse possível, muitas pessoas viveriam assim, sem dúvida, dando cinco passos à frente e quatro atrás, retroagindo cada vez que algum acontecimento as magoasse. E voltando, sem dúvida, a cometer de novo os mesmos erros, cair nas mesmas armadilhas, transformando-se num boneco amnésico capaz de pisar cem vezes na mesma casca de banana, como certos comediantes do cinema mudo.

Vejo essa continuidade de espírito entre o romance brasileiro de 1919 e o norte-americano de 2010, e o próprio Lima Barreto, se tivesse acesso a este último, talvez se visse um pouco nele, sem estranhar sua ousadia especulativa.

Pois, afinal, umas poucas linhas adiante o próprio “Augusto Machado” recorre à ficção científica para explicar a amizade que nutre por seu mestre Gonzaga de Sá, e a identificação espiritual entre os dois:

Arrependi-me da maldição e reconciliei-me comigo mesmo. Havia de curar-me. Gonzaga de Sá não me falava, mas eu sentia que a metade daqueles pensamentos eram dele. A nossa amizade era tão perfeita, que dispensava palavras. Entre nós havia aquele aperfeiçoamento de comunicação, que Wells tanto encomia nos marcianos: mal emitia um pensamento, um dos nossos cérebros, ia ele logo ao outro, sem intermediário algum, por via telepática.

Lima Barreto se refere, é claro, aos marcianos de The War of the Worlds (1898), de H. G. Wells.









sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

4201) Onze talismãs (20.1.2017)




(ilustração: Greg Craola Simkins)

1
A medalha do santinho, cerrada com força na mão direita de Luísa, durante a decolagem e aterrissagem, e a tentativa de não pensar numa possível futura matéria de jornal registrando que na mão de uma das vítimas foi encontrado uma medalha milagrosamente intacta.

2
Uma foto dela na carteira, apenas isto; uma foto de doçura especial, foto que Maurício leva consigo para toda vez que tiver uma raiva dela recorrer à foto e fazer a raiva passar mais depressa.

3
O botão de volume do rádio da sala, que Betinho ao abaixar fazia o time jogar mal e ao aumentar jogar bem; de modo que o recurso era ir aumentando de pouquinho até a mãe reclamar lá da cozinha, e então abaixar de vez e depois passar looongos minutos aumentando de pouquinho a chances de gol e vitória.

4
As sementes de romã mastigadas por Carlos na ceia do réveillon, dobradas em papel laminado, guardadas com esperança na carteira eternamente vazia.

5
O caldo de cana tomado à tarde por João Dias, naquela mesma esquina, encostado no mesmo balcão, vendo as gerações passarem diante dos seus olhos, cada vez que algo momentoso sucedia em sua vida, paixão nova, filho nascendo, eleição ganha ou perdida, sucesso no trabalho, demissão, cedo ou tarde ele dava um jeito de passar naquela rua, tomar aquele caldo, mesma esquina, mesmo balcão, como fazia há mais de trinta anos, olhando, lembrando, dizendo: “Eita mundo véio.”

6
Uma pedrinha qualquer achada na rua por Zuleika e guardada no bolso durante anos, à qual ela atribuiu por-decreto poderes miraculosos, que vem por outra se confirmavam.

7
O ritual que o dr. Amândio Correia executa para dar sorte, todos os anos, no dia do seu aniversário, quando ele manda rezar uma missa em honra dessa data na igreja próxima do engenho dos seus pais, onde ele foi criado, e para essa missa ele traz os parentes mais próximos, parteira, padre velho que o batizou, sacristão, um comício de gente, todos os anos sem falta ele convoca e financia a vinda de todos, sendo que após a missa é servido um lanche de biscoitos, salgadinhos e suco de maracujá aos presentes.

8
A água de coco gelada que para Jacira era tiro-e-queda contra inveja, olho grande e língua ferina, e que a ajudou a chegar aos 92 anos feliz como uma garota.

9
O gato que nas noites de verão miava pelas eiras e beiras do telhado; quando Jorge menos esperava o felino aparecia, arauto da sorte, mascote da magia, acordando as pessoas, e em noites assim, no andar abaixo do seu, a vizinha do 203 escancarava a janela com estardalhaço, como quem manda um sinal de fumaça privê, e o rapaz se sentia o dono do mundo, botava uma camisa, um perfume, e descia pra bater baixinho na porta dela.

10
A frase cabalística, inventada por ela mesma a partir de radicais e prefixos, que quando digitada no Google levava Ludmila sempre para algum saite inesperado, misterioso e fascinante.

11
Uma camisa cor-de-baunilha com uma faixa larga horizontal cor-de-maçã que um garoto de 16 anos usou na estréia do time no campeonato, que terminou com vitória, obrigando-o moralmente a repetir a camisa em todas as partidas da jornada invicta do time, até que no dia da decisão ele descobriu com horror que ela tinha sido mandada à lavadeira, o que desencadeou uma verdadeira operação de guerra até que a camisa úmida e amarfanhada foi trazida de volta, vestida às pressas, e horas depois agitada em triunfo nos ares, na comemoração do tão-sonhado título.







segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

4200) Flash Fiction (16.1.2017)




Os textos curtíssimos de ficção, dos quais falo aqui de vez em quando, estão para a prosa narrativa mais ou menos como o cartum está para a história em quadrinhos (HQ).

O cartum é algo que a gente olha, lê em alguns segundos, e recebe o impacto – pá!... – de uma idéia, que em geral vem sintetizada em uma imagem e uma ou duas frases (às vezes só a imagem mesmo).

Dizem os teóricos e praticantes da ficção curtíssima que ela serve como equivalente verbal disto.

Seriam as famosas “histórias em 6 palavras”: o exemplo famoso é atribuído a Hemingway: “Vende-se. Sapatinhos de bebê. Nunca usados.

Ou as “histórias em duas frases”. Gosto desta, que achei em inglês por aí, assinada com nickname: “Dia 312. A Internet ainda não está funcionando.” – fluffyponyza.

Ou as “histórias com 100 caracteres”: “Quando Gustavo C. acordou de sonhos intranquilos, estava metamorfoseado num livro escrito em húngaro.”, de Gustavo Melo Czekster.

Em inglês usa-se muito o Drabble, que são historietas de exatamente 100 palavras (não contando o título). Exemplos aqui:



Tudo isto, para mim, equivale a um cartum. Pá! – e o efeito acontece. Acho que a principal crítica que pode ser feita a isto, em termos de ficção em prosa, é que a ficção geralmente busca produzir uma impressão de passagem de tempo, de mudança, de transformação psicológica. E essas ficções curtíssimas proporcionam apenas a mais rápida e superficial das mudanças, que é a surpresa.

Em tese, qualquer história, com o mínimo de duas palavras, pode indicar permanência + mudança, identidade + alteridade, espaço + tempo. Mesmo a mais curta. “Eu morri” – está tudo aí.

Tem gente que pergunta: “Mas então o romance vai deixar de existir?! Vamos ser proibidos de escrever livros de 200 ou 300 páginas?!”  Não, colega. Ninguém vai proibir nem aposentar coisa nenhuma. Cada um faz o que lhe der na telha, conforme a altura de sua escada. Fazer microficções desse tipo é apenas um exercício que agrada a alguns porque parece aquelas esculturas de santos feitas num palito de fósforo, ou os caras que conseguem escrever o Pai Nosso numa cabeça de alfinete.

Quando comcei a escrever no “Jornal da Paraíba” em 2003, minha coluna tinha tamanho fixo entre 2.900 e 3.000 caracteres. Amigos perguntavam por que eu não publicava um conto de vez em quando, e eu dizia que era impossível escrever um conto que prestasse num tamanho tão pequeno. E o fato é que, olhando meus registros, vejo que só comecei a tentar fazer isso depois de mais de 800 colunas publicadas.

Depois, em 2011, o limite de espaço no jornal caiu para 2600 / 2800 caracteres com espaços. A esta altura eu já tinha “pegado o cacoete” e estava produzindo pequenos contos curtos que, sem serem textos extraordinários, eram compactos, precisos, tinham começo-meio-fim, e me deixavam satisfeito, porque sempre fui de escrever muito. Se eu me pegasse com dois ou três personagens conversando numa mesa, então, não tinha papel que chegasse.

Vários desses contos estão em Histórias Para Lembrar Dormindo (Casa da Palavra, 2013). Algum desses meus contos é uma obra prima? Não, e nenhum deles precisa ser. São exercícios. Obra-prima é algo que acontece como resultado do nosso trabalho, mas independente de nossa intenção. Resulta de uma mistura misteriosa entre Inevitabilidade e Acaso.

Sentar no computador com a intenção de produzir uma obra-prima é como ir para a cama com a esposa com a intenção de produzir um filho bonito. Não é assim que essas coisas acontecem.

A “flash fiction”, como se chama por aí, é uma boa escola para quem pertence ao time dos fluentes, dos caudalosos, dos escrevedores velozes e compulsivos.

É neste sentido que oficinas literárias podem ser muito úteis inclusive para quem já escreve bem, para quem já publicou, ganhou prêmios, o escambau. Escritores assim alcançam uma certa medida de sucesso pelas qualidades que de fato existem nas suas obras, mas têm defeitos (esse de escrever demais, no presente caso) que a médio prazo começam a cansar o leitor.

Já vi oficinas de roteiro de cinema em que se cobrava dos alunos: conte sua história em uma frase, depois em um parágrafo de cinco linhas, depois em uma lauda, depois em dez laudas. Claro que uma tarefa assim nunca é feita em sequência. O cara vai botando a história no papel e vai percebendo os detalhes que pertencem a cada um desses estágios.

Praticando essa forma, o escritor, se chegar a dominá-la em certa medida, percebe a força dos efeitos narrativos na prosa muito curta, onde cada palavra pesa, onde se diz “o casarão” sem poder descrever o telhado, as cornijas, as janelas, as balaustradas, o pórtico, o muro coberto de hera...

A grande maioria desses textos curtos não tem muita narrativa, no sentido de contar uma historinha completa com começo, meio e fim: tem mais de reflexão abstrata ou de descrição concreta de uma cenazinha do cotidiano.

Não importa, a não ser que o autor queira se tornar um mestre nesse estilo. Para quem o utiliza como um meio, apenas, pode ajudar muito. Raymond Chandler escrevia seus romances usando folhas de papel cortadas ao meio. Cada fragmento de cena específico tinha de caber ali. Cada meia-folha daquelas era reescrita várias vezes. A existência de um limite nos obriga a valorizar tudo que poderá caber lá dentro. A extensão é uma “contrainte”, uma restrição voluntariamente auto-aplicada e fielmente seguida.








quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

4199) Romances emprestados (12.1.2017)




Alguns escritores afirmam que as idéias caem do céu sobre a sua cabeça como cocô de pombo. O cara sai de casa para ir na papelaria da esquina a fim de comprar um cartucho de tinta 92 preto, e de repente sente alguma coisa quente a lhe escorrer pelo cérebro. É um conto policial pronto, protinho, saído do forno, desencadeado pela visão de um grupinho de pessoas conversando diante de um prédio enquanto um deles toca a campainha.

Por esses mecanismos inexplicáveis, ele percebe (não “imagina”; ele sabe, com a convicção dos verdadeiros ficcionistas) que aquele velhote é Fulano que tem tais ou quais objetivos inconfessáveis, aquela mocinha é Sicrana que está entrando de gaiata numa conspiração alheia, aquele senhor de terno é Beltrano que pensa estar dando um golpe mas também é vítima, aquela menina emburrada de óculos será a narradora de tudo, quando na velhice vier a entender de fato o que se passou.

Assim nascem muitos contos: como uma configuação casual que se cristaliza quando a imaginação malévola (mas em últimos termos inofensiva) de um escritor projeta sobre gente de verdade seus sonhos ou pesadelos de mentira.

Julio Cortázar comentou certa vez que a coisa que mais lhe ocorria em coquetéis ou reuniões sociais era alguém se aproximar dele e dizer algo na linha de:

-- Bem, já que você é escritor, escuta esse fato que se deu comigo, tenho certeza de que você vai fazer dele um conto sensacional.

O longilíneo Julio garante que nunca um conto lhe brotou depois de um ameaço dessa natureza, mas, em compensação, um papo casual entre algumas senhoras, entreouvido sem compromisso, lhe inspirou “Los buenos servicios”, um dos contos mais tocantes do livro Las Armas Secretas (1959) – a história de uma criada, uma mulher simples, que é contratada para fazer o papel da mãe de alguém desconhecido durante um velório.



Histórias emprestadas podem se transformar em grandes livros quando pousam no ouvido certo. Reza a lenda que o argentino Manuel Puig (o autor de O Beijo da Mulher Aranha e outros belos romances), quando morava no Rio de Janeiro, precisou fazer uma obra qualquer em sua casa e mandou vir um pedreiro. O pedreiro passava o dia trabalhando e conversando, e de seu monólogo autobiográfico Puig extraiu seu romance Sangue de amor correspondido (1982) – exercendo, sem dúvida, seu privilégio autoral de inventar quando lhe convinha.

Um dos clássicos da literatura brasileira, Memórias de um Sargento de Milícias (1852-53) foi publicado pelo seu autor, Manuel Antonio de Almeida, sob o pseudônimo de “Um Brasileiro”. Li em alguma parte – quem conhecer melhor a história que me ajude – que Almeida teve um certo pudor em se assinar como autor do romance (que saiu em folhetins nas páginas do suplemento “A Pacotilha”, do Correio Mercantil) porque toda a história lhe tinha sido passada verbalmente pelo sargento citado no título, e ele não fez mais do que registrá-la por escrito e publicá-la.



A prática do jornalismo é um dos principais canais deste veio da literatura em que a história narrada oralmente por A se transforma no romance escrito por B. No Rio de Janeiro contemporâneo os romances de Julio Ludemir sobre personagens obscuros do crime organizado têm também como base essas histórias de vida recriadas por escrito: No Coração do Comando (Ed. Record, 2002), Lembrancinha do Adeus (Ed. Planeta, 2004) e outros.




“Romance emprestado” talvez não seja o nome mais adequado para essa vertente, porque romance é o resultado final, e o que o primeiro narrador empresta é apenas o argumento errático, episódico, fragmentado, que serve de base ao trabalho estrutural e formal realizado pelo escritor. Mas não há dúvida de que quando não somos capazes, naquele momento, de conceber uma grande história, podemos pelo menos estar atento às histórias que o mundo coloca de bandeja no colo da gente.







domingo, 8 de janeiro de 2017

4198) A festa dos poetas (8.1.2017)




(foto: Dantinhas Vilar)


E lá fui eu mais uma vez parar em São José do Egito (PE), para a Festa do Rei, que celebra a data de nascimento do cantador Lourival Batista, o famoso “Louro do Pajeú”. Este ano o mote da festa foi: “102 anos de Louro / e 100 de Zezé Lulu”. Não cheguei a conhecer pessoalmente este último, cujos versos aparecem em todas as antologias, mas fui amigo de Louro, vi-o cantar pelo Brasil afora numa excursão, e muitas vezes nos bares de Campina Grande.

Louro era chamado o Rei do Trocadilho, pela sua obsessiva mania de desmontar e remontar palavras, refazendo-lhes o som e o sentido. Um dos seus versos mais famosos diz:

Você diz que eu sou pobre
isso é desgraça perene
mas tire o P, bote um N
e eu acabo sendo nobre...
Troque por C, fica cobre;
cobre é parente de ouro;
botando um T fica touro
como a carne e vendo a pele;
o T sem o traço é L
e eu fico mesmo por Louro. 

Isso é da mesma família dos “doublets” ("dublês"), as mutações verbais praticadas por Lewis Carroll (o de Alice no País das Maravilhas), onde ele transformava GOOD em EVIL trocando uma letra por vez (e cada palavra resultante tem que ser obrigatoriamente uma palavra de verdade, de uso corrente). Augusto de Campos adaptou essa brincadeira para o português, produzindo séries como BEM / sem / som / sol / sal / MAL, etc.

Acho que é o mesmo jogo a que Vladimir Nabokov (“Pale Fire”, na nota à linha 812 do poema) se refere como “Word Golf”, onde se transforma HATE em LOVE em três estágios, e LIVE em DEAD em cinco (“com LEND no meio”). Uma arte que no Brasil teve também entre seus praticantes o poeta Augusto de Campos:


("doublets" de Augusto de Campos)


Mas enfim. Lá me fui para São José do Egito na confortável carona de Leimar de Oliveira e Maria Inês, comparsas fiéis de várias décadas. No trajeto Campina-São José fomos vendo a caatinga esturricada. Entre o Natal e o Ano Novo caiu um dia de chuva em Campina, e bastou isso para que a vegetação na estrada para o Sertão estivesse verde pela metade.

Lancei na festa meu livro Cantoria: Regras e Estilos, volume 1 da série "Arte e Ciência da Cantoria de Viola" (Ed. Bagaço, Recife), o que só aconteceu graças à insistência de Amaro Filho e Cláudia Moraes, da Página 21 (que produz o evento) e à acolhida sempre carinhosa da família Marinho, descendentes de Louro, tendo à frente Antonio Marinho, meu parceiro em outros trabalhos. (O nome de Lourival era Lourival Batista Patriota; a família usa artisticamente o sobrenome Marinho, da linha materna, que descende do grande Antonio Marinho, o primeiro cantador que Ariano Suassuna viu cantar, quando era menino.)



Reencontrei Zé de Cazuza, o homem-gravador, paraibano véi que é a memória viva de cantoria, e com 87 anos sabe tanto verso que se fosse recitar tudo ia precisar de outro-tanto de prazo. Me recitou versos fesceninos, sonetos de Rogaciano Leite, repentes geniais de cantadores cujo nome nunca ouvi. 


(foto: Amaro Filho)

Aqui, um pequeno vídeo sobre Zé, pela TV Itararé de Campina Grande:

Reencontrei Dedé Monteiro, o poeta de Tabira que recentemente foi reconhecido como “Patrimônio Vivo de Pernambuco” pela Fundarpe, poeta do coração grande, do gesto elegante e da palavra precisa. Aqui, um vídeo de Dedé recitando um dos seus poemas mais conhecidos, “Fim de Feira”:


Direis agora: é uma festa da velha guarda?  Sim, mas a jovem guarda também pisa no palco. Vi apresentação de bandas heavy metal de São José homenageando um jovem integrante falecido no ano passado, Carlinhos Veras, cantando metal em inglês mas também um belo e vigoroso arranjo para “Assum Preto” de Gonzaga e Humberto Teixeira. (Furar os olhos dum passarinho pra ele cantar melhor. Tem coisa mais heavy metal do que a letra dessa música?!). 

Shows com bandas jovens como Em Canto e Poesia (dos irmãos Antonio, Greg e Miguel Marinho), Vozes e Versos (que fez uma bela recriação do meu “Caldeirão dos Mitos”), As Severinas (uma das melhores bandas femininas de forró que se pode encontrar por aí), e até do Spock Quinteto, do Recife, trazendo frevo e ciranda para a festa do Sertão.

Teve uma mesa de glosa cheia de suspense e bem conduzida por Jorge Filó; teve a projeção de filmes sobre o universo da cantoria, com destaque para "Maria" de Carol Correia e "O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras" de Petrônio Lorena, sobre a dama-da-noite Severina Branca, musa de muitos poetas boêmios de São José, hoje octogenária e bem humorada, sentada na fila da frente.

Tive também a alegria de receber a visita de Dantas Suassuna e Dantinhas Vilar, que estavam em Taperoá e queimaram o chão quando souberam que eu estava em São José, porque temos projetos em comum que serão anunciados no momento propício.

E para que isto aqui não fique parecendo uma enorme coluna social, um pouquinho de reflexão. A festa de Louro é uma festa que celebra velhos poetas centenários, mas também é uma festa realizada por jovens. Jovens como eu fui um dia, curiosos de conhecer não apenas o andar térreo do mundo, que é o presente, mas todos os demais andares daí pra cima, que são os séculos acumulados no arranha-céu do Tempo.

Porque só o Passado existe. O presente é uma luz estroboscópica piscando entre o instante, a memória e a imaginação. Tudo que existe de material e imaterial no mundo pertence ao passado. O tênis que estou calçando, o café que tomo, o pão quente que estou comendo agora, tudo isto foi feito no passado. O futuro é uma aposta, uma suposição de fé.

Uma vez eu discutia com um amigo punk sobre “essa mania que os nordestinos têm de cultuar o passado”. Passado para ele, naquela conversa específica, eram os Beatles. Perguntei: “Quem é o presente, então?”. Ele disse “Os Ramones”. Eu disse: “Rapaz, os Ramones são passado também, aliás, se for fazer uma estatística, no cemitério já tem mais Ramone do que Beatle.”

Tudo é passado. A música do século 18, o cinema do século 20, o rock de 2016 e o jornal de ontem são passado. A epopéia de Gilgamesh, as lendas do Rei Artur, tudo são partes do passado, mas se mantêm vivas no presente, graças a nossa memória e nossa recriação.

Sim: na memória, que mantém vivos tanto os Beatles quanto os Ramones. Lá, os dois são contemporâneos de Dedé Monteiro e Zé de Cazuza, são contemporâneos de Lewis Carroll e de Lourival Batista.

O passado que continua acontecendo agora, através de alguém, é tão presente quanto as coisas que acabam de brotar pela primeira vez. Na frase famosa de William Faulkner, “o passado não morreu, ele nem terminou de passar ainda”. Podemos dizer também que não existem o passado, o presente e o futuro. Só existem dois tempos: o Passado e o Passando.

E dou a cara a bofete se na festa dos 200 anos de Louro não houver rock, forró, cantoria, mesa de glosa, cerveja em lata e churrasquinho no espeto de pau (porque ninguém é de ferro).







sábado, 7 de janeiro de 2017

4197) "Fogo Pálido" de Vladimir Nabokov (7.1.2017)



Acabei ontem a leitura de Fogo Pálido de Vladimir Nabokov (“Pale Fire”, 1962). É um daqueles romances policiais de “crime anunciado” onde nas primeiras páginas tomamos conhecimento de que foi cometido um crime mas nos é dito apenas o básico: quem matou, quem morreu. Todo o resto do livro é a reconstituição implacável dos fatos que conduziram àquele desfecho.

Meu livro preferido nesse subgênero é A Judgement in Stone (1977) de Ruth Rendell (“Um Assassino Entre Nós”, Editora L&PM), que começa com a frase famosa: “Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever”.

Dizer isso de Fogo Pálido, na verdade, nem raspa o verniz desse romance complexo e divertidíssimo, daqueles que mal a gente termina de ler tem vontade de voltar ao começo para reler tudo à luz das muitas revelações que são feitas ao longo de todas as páginas.

São várias histórias por trás do enredo básico, e a edição que li (Penguin, 2000) tem um ensaio introdutório de Mary McCarthy tão cheio de alusões surpreendentes que a releitura parece obrigatória.

Não garanto que todo mundo ache o livro tão divertido quanto eu achei. Talvez o excesso de referências literárias e de digressões fantasiosas desconcerte algum leitor. Mas é inevitável. Fogo Pálido é formado por dois textos sucessivos: um poema em quatro Cantos e 999 versos, escrito pelo fictício poeta John Shade, e um ensaio explicativo escrito pelo também fictício Prof. Charles Kinbote, um dos mais formidáveis exemplos de narrador não-confiável em toda a literatura moderna.

Shade e Kinbote são professores de literatura na universidade fictícia de New Wye, nos montes Apalaches, e residem no campus. Ou seja: o livro é ambientado no universo onde Nabokov, também professor, passou a maior parte de sua vida adulta. É cheio de rivalidades e maledicências acadêmicas, aquelas briguinhas-de-departamento que consomem a maior parte do fosfato dos cérebros mais privilegiados de nossa pirâmide intelectual.

A tradução brasileira que tenho é uma edição do Círculo do Livro, traduzida por Jório Dauster, que também já traduziu o Lolita do mesmo autor. Dauster é um tradutor ambicioso, que também já encarou livros de Thomas Pynchon, Virginia Woolf e Philip Roth, ossos saborosos e duros de roer.



Gostei do modo tran-chan como ele corta um nó górdio bastante embranquecedor de cabelos, ao anunciar que certos comentários do Prof. Kinbote, sobre detalhes técnicos de metrificação e prosódia na língua inglesa, não têm equivalente em português e não podem (ou não precisam) ser traduzidos. Nenhum problema, pelo que me toca. O livro é tão pontilhado de pequenos achados verbais invariavelmente brilhantes que ninguém vai sentir falta.

Claro que nem todo mundo aprecia as piruetas verbais de Nabokov: somente os que curtem trocadilhos, anagramas, jogos de palavras, acrônimos, mutações verbais, neologismos... Nem todo mundo gosta disso. Somos poucos, mas somos felizes.

O ensaio de Mary McCarthy registra, entre outras coisas, as incontáveis referências shakespearianas no livro de Nabokov. Elas começam pelo titulo: o fogo pálido a que ele se refere é a luz do sol, roubada pela lua para poder brilhar também.

A citação é da peça Timon de Atenas, ato IV, cena 3, quando Timon se dirige a um grupo de ladrões:

(...) Eu vos darei exemplos de ladroagem:
o Sol é um ladrão, que com sua atração poderosa
rouba o mar para si; a Lua é ladra contumaz
e seu fogo pálido é roubado ao próprio Sol;
o Mar é ladrão também...  (trad. minha)

Mary McCarthy parte desta citação para glosar temas associados ao “roubo”, principalmente o tema do reflexo, da imagem roubada a alguém. Esse jogo de duplicidades é mantido durante o livro inteiro com o uso de duplas personalidades, identidades falsas, passagens secretas, espionagem, duplicidade sexual etc.  Há sempre alguém furtando e usando algo que não lhe pertence, seja uma identidade, uma imagem, um papel social.

Pale Fire é também o livro em que Nabokov introduziu uma de suas criações mais memoráveis, o país imaginário de Zembla, situado ao norte da Rússia. É de lá que vem o Prof. Kinbote, daquela espécie de Ruritânia cheia de príncipes, palácios, arquiduques, jardins de inverno, paradas militares e golpes de Estado.

Exilado nos EUA, Kinbote torna-se amigo e tiete do poeta John Shade, e de certo modo o influencia a escrever um poema sobre o reino fantástico de Zembla. Um dos grandes efeitos cômicos do livro é o fato de que o poema acaba sendo escrito, mas o poeta só fala de si mesmo, e o comentarista sempre dá um jeito de dizer que ele está se referindo a Zembla.

As quilométricas notas do Prof. Kinbote criam uma fascinante realidade paralela e têm muito pouco a ver com o texto sendo analisado. Mas, como Kinbote afirma em sua Introdução, “para o bem ou para o mal, é sempre o comentarista que tem a última palavra”.









terça-feira, 3 de janeiro de 2017

4196) Um cão de lata ao rabo (3.1.2017)



(Machado, por: Rocha + Takiguthi + Ramon Muniz)





Na velha edição da “Obra Completa” de Machado de Assis em três volumes, da Aguilar, li uma crônica dele em que um mestre escola sugere um tema a seus alunos.

O tema proposto é “Um cão de lata ao rabo”, e ao recolher os trabalhos o imaginário professor recebe três que se destacam dos demais. Os respectivos estilos são: “1 – Estilo antitético e asmático; 2 – Estilo ab ovo; 3 – Estilo largo e clássico.”

Esse é o exemplo mais antigo que me lembro de uma história sendo repetida, de três maneiras diferentíssimas, por três maneiras diferentes de pensar, que Machado parodia de modo muito divertido.


Anos depois dei uma furtadinha nesse título para um conto, tendo como mote a imagem sugerida por Machado. O escritor é um cachorro correndo. Amarrada ao rabo dele, há latas que produzem sons musicais diferentes. Essa melodia é o estilo dele, e a obra é o que resulta dela.

Existem escritores para quem escrever é rasgar a alma e as tripas e botá-las à venda na tábua de uma barraca pouco higiênica na esquina da baixa da Rua da Lama num país periférico e suicida. Para escritores assim, o estilo é a pessoa. Eles não poderiam escrever de maneira diferente, mesmo se disso dependessem suas vidas. O escritor é aquilo, ele escreve aquelas coisas, sempre daquele jeito. Ele não tem dois ou mais conjuntos de entranhas, só tem aquele.

E existem os que, sem perder a sinceridade ou o personalismo, manejam essas técnicas como Machado manejou. Para este segundo tipo de escritores, trocar de estilo é tão banal quanto trocar de roupa. Ou de figurino, porque o autor assim é um ator, troca de máscaras como bem lhe convém. Como faz Raymond Queneau em seus famosos Exercícios de Estilo, livro onde ele reconta uma mesma cena casual, entre transeuntes, de 99 maneiras diferentes.



Um cão que atravessa a mesma rua 99 vezes, cada vez com uma lata diferente atada à cauda. E cada vez uma sonoridade, um timbre, um andamento diferente. A lata é outra mas, por baixo disso, algo se repete e está sempre presente, porque o cão e a rua são os mesmos.

Queneau fez no seu livrinho uma demonstração meio por “redução ao absurdo”. Diante de suas piruetas verbais, os seus tradutores acabam se divertindo também, porque é um processo reiterativo que convida à reaplicação. Existe, sim, a Grande Arte da paródia, ou do pastiche, ou da imitação meramente técnica. 

Experimentos lúdicos desse tipo parecem às vezes, ao leitor pouco aficionado desses jogos mentais, uma demonstração de erudição, de alta complexidade. Nem tanto. Em geral, os escritores que gostam de truques assim (Lewis Carroll, James Joyce, Umberto Eco, Thomas Pynchon, Georges Perec) fazem porque acham divertido, e conseguem usar essa diversão como um gerador de energia-de-escrever.

Perec dizia que seu objetivo era produzir uma obra extensa onde não houvesse dois livros quaisquer pertencentes ao mesmo gênero. Não sei se conseguiu, mas em todo caso isso descreve bem a variedade das suas abordagens narrativas. Ele era cruzadista, meio cientista, fã de whodunits e de pulp fiction. E dominava (embora não tanto quanto seu mestre Queneau) um grande número de estilos.




Nem por isso sua visão do mundo, ou o que a valha, deixa de aparecer em tudo quanto ele escreve. A obra é raramente autobiográfica, mas estão há sempre referências a toda uma história sua que se perdeu e outra que se salvou.

Em casos como esses todos, a multiplicidade de estilos não se transforma numa multiplicidade de capas escondendo o autor, e sim como uma multiplicidade de rascunhos feitos de memória para captar uma imagem que se viu poucas vezes. Não são mil disfarces, mil camuflagens, são mil tentativas de aparecer feitas por algum fantasma.

Alguns têm a facilidade de ser publicados como humoristas, como foi o caso de Millôr Fernandes (“enfim, um escritor sem estilo!”), outro notório surrupião de modos de falar, ou como poetas, caso de Fernando Pessoa, que inventava tanto o estilo quanto o homem.



Ou como Daniel Clowes, o surrealista-lynchiano de novelas gráficas: Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro (Like a Velvet Glove Cast in Iron, 1993) tem a nonsequiturice de Um Cão Andaluz numa ambientação de road movie e semi-enredo de filme policial noir.

Um dos seus álbuns, Wilson, segue, de leve, a sugestão dos 99 de Queneau. Cada página isolada do livro é desenhada num estilo de grafismo e de cor diferente das anteriores – mas a história avança. Não é a mesma cena, são capítulos de uma mesma história, desconjuntada mas proposicionalmente única. Como se a cada salto do olhar para o começo da página nova houvesse uma troca de canal, ou uma aplicação de filtro.



Em Wilson, Clowes conta as atribulações de seu barbudo sub-herói, que em algumas imagens é a cara do Walter White de Breaking Bad (só que numa versão existencialista e menos agressiva). As mudanças de estilo têm continuidade suficiente para que o leitor possa pular de uma faixa para a outra sem atrapalhar o passo.  Li em algum lugar que alguns críticos nem perceberam, pelo pouco que comentaram, o uso de toda essa variedade de formas, com transições tão insistentes e propositais.



Se algum crítico nem percebeu isso não percebeu, está na companhia dos críticos que leram o livro de Georges Perec onde ele proibiu a letra E (La Disparition) e não perceberam que uma das vogais estava ausente do livro inteiro. O romance foi traduzido ao inglês por Gilbert Adair como A Void, e agora no Brasil como O Sumiço, em tradução de Zéfere (Ed. Autêntica).




Saber imitar estilos é como saber imitar a voz e os trejeitos dos amigos, ou ser capaz de produzir 99 personagens e diluí-los em si próprios, deixando ver o ator.