domingo, 17 de abril de 2011
2533) O enterrado vivo (17.4.2011)
Não tinham filhos e moravam no fim da rua, numa casinha antiga que não se encaixava com as casas novas, ficando como um dente-do-siso torto, afastada das demais. Seu Manuel era aposentado, passava o dia na frente da TV ou sentado no terracinho, vendo a rua. Dona Santa visitava às vezes as vizinhas, que gostavam dela e atendiam seus pedidos simples. Viviam um para o outro e pareciam não sentir falta de nada nem de ninguém.
Na rua todos lembravam o que acontecera alguns anos antes. Uma tarde, Seu Manuel caiu de bruços na sala, morto. Dona Santa correu às vizinhas, deu o alarme. Começaram as providências: alguns homens se cotizaram para comprar o caixão modesto, as mulheres ajudaram Dona Santa a preparar o morto, acender os incensos. Em pleno velório, à noite, o defunto ergueu um braço, depois ergueu o corpo e olhou em redor. Houve um Deus-nos-acuda que ainda hoje é contado e recontado na vizinhança. A verdade é que ele estava vivo. Tivera apenas um ataque de catalepsia (a palavra foi fornecida pelo médico que o examinou pós-ressurreição). Durante um ou dois anos a história foi repetida na rua. Depois, passou-se.
Nunca passou para Seu Manoel, pois vieram pesadelos em que ele despertava dentro de um caixão escuro. Acordava gemendo, com falta de ar. Depois, obrigou Dona Santa a dormir de luz acesa. E dizia: “Santinha, não me deixe ficar daquele jeito de novo. Se eu não acordar, me belisque, enfie uma agulha! Não deixe que me enterrem vivo!”. Ela enxugava os olhos, abraçava-se com ele e prometia tudo que ele quisesse. Ela também não esquecia aquela noite terrível, a despedida para sempre, e depois o horror do retorno misturado à alegria do milagre.
Até que Seu Manoel sofreu o segundo ataque, igual ao primeiro. Ela estava doente, fraca. Arrumou-o na cama, sozinha, banhou-lhe o rosto com água de hortelã. Mesmo com remorsos, acabou enfiando a agulha, mas o braço fininho do marido não reagia. Colocou o espelho diante dos lábios dele, mas lembrou que da primeira vez o vidro também não tinha ficado embaçado. Fazia café e colocava a xícara diante do seu rosto, pensando que talvez aquele cheiro, que ele gostava tanto, o despertasse.
Alguém notou que o casal não aparecia no terraço há algum tempo. Uma vizinha comentou com outra, que comentou com outra. No sábado de manhã juntaram-se e foram até lá, para ver se os velhos precisavam de alguma coisa. As janelas estavam fechadas mas elas ouviram alguém falando lá dentro. Bateram, ninguém respondeu. Empurraram, a porta abriu. Elas entraram devagar na sala, depois no corredor que levava ao quarto, e ouviram a voz de Dona Santa: “Não se preocupe não, meu véio... Que eu não vou deixar que eles lhe enterrem, vou ficar aqui do seu lado até você ficar bom”. Entraram no quarto, tapando o nariz com a mão, e a viram sentada num tamborete junto da cama, murmurando com olhos insones, segurando aquela mão que se desmanchava.
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