(Serdar Orcin, numa cena do filme)
Um personagem curioso de nossa época é o que eu chamaria O Homem Que Não Interfere. Um indivíduo cuja especialidade é deixar que tudo aconteça em sua volta enquanto ele se limita a olhar sem interesse, ou a nem dar atenção. Ele não age, apenas reage, o mínimo possível. Deixa-se arrastar para situações absurdas por essa incapacidade de se envolver em algo por vontade própria.
O bordão desse tipo de gente é a frase “Eu preferiria não
fazer isso”, do escriturário Bartleby, da noveleta homônima de Herman Melville
(1853): o empregado que recusa todas as tarefas.
Ou a frase clássica do faquir de Franz Kafka em “Um
Artista da Fome” (1922), que diz: “A verdade é que nunca encontrei uma comida
que me agradasse”.
Existe algo dessa indiferença em Meursault, o famoso
protagonista de O Estrangeiro (1942) de
Albert Camus, o cara que fica de Maria-Vai-Com-As-Outras numa série de
situações, que começam com a morte da mãe numa casa de repouso.
Ele (parente mais próximo dela) colabora nas providências
fúnebres, comparece ao velório, mas todo mundo desconfia do modo estranho como
ele se porta, sem chorar, sem fazer drama, sem parecer especialmente triste.
E isto não lhe será perdoado mais à frente. Ele vai matar
um invidíduo, sem razão; mas ele próprio dirá que foi a julgamento não por
isso, mas por não ter chorado no velório da mãe. Por não ter se comportado
“como todo mundo se comporta”.
O livro de Camus recebeu em 2015 uma curiosa versão ambientada
na Turquia, com o filme Destino
(Yazgi), de Zeki Demirkubuz.
Aqui:
O filme poderia até ser descrito como um Estrangeiro num universo paralelo, onde
os personagens são equivalentes, mas os fatos acontecem de outra forma. E o
filme de Dmirkubuz é de uma secura e um timing
muito corajosos.
Musa é um rapaz que trabalha num escritório comercial. Nas
primeiras cenas do filme ele vê televisão em silêncio com a mãe idosa, à noite.
Ela vai se deitar, queixando-se de dor de cabeça. Ele não diz nada. A câmera
acompanha de longe a mãe seguindo pelo corredor, entrando no quarto lá no fim.
Na manhã seguinte, Musa levanta para ir trabalhar e vê
que a mãe ainda não acordou. Olha pela fresta da porta do quarto. Ela está
deitada.
Ele prepara mal e porcamente o próprio café, e vai
trabalhar. Ao comentar com os amigos, eles o aconselham a ver se a mãe está
bem. Ele volta para casa. Vai à porta do quarto. Acaba entrando, tocando no
ombro dela...
O diretor leva estes cinco ou dez minutos terríveis para
reproduzir à sua maneira, que é ótima, o início do romance:
Hoje, mamãe morreu. Ou ontem talvez; não sei. Recebi um telegrama da
casa de repouso.
No filme turco, a mãe mora com o filho, e o diretor
encontra uma maneira dolorosa de reproduzir esse “não sei”.
Mais adiante, como no livro, dois árabes juram vingança
contra um amigo do protagonista, que começa a andar armado. Isso desencadeará o
famoso crime na praia, quando Meursault, que está de posse da arma naquele
momento, mata um deles “por causa do calor”.
No filme turco, os irmãos árabes aparecem, Musa e o amigo
atiram neles, mas eles fogem sem maiores consequências. A história de Musa vai
envolvê-lo num crime, até mais bárbaro do que o do livro de Camus, mas ele,
sabendo que é inocente, recusa-se a se defender. Acaba sendo solto por fatores
alheios a sua vontade, e insiste em repetir para o oficial que o liberta: para ele,
tanto fazia estar preso ou solto.
Camus escreveu seu livro como uma resposta bem pessoal
aos romances policiais noir que lia
na época; O Estrangeiro é de 1942.
Nos romances do submundo norte-americano o ambiente era cheio de pensões baratas,
homens rudes, desempregados, envolvendo-se com mulheres bonitas, tacanhas e
ambiciosas. Uma depressão econômica, uma guerra mundial, e milhões de destinos
individuais sendo soprados como grãos de farinha, sem poderem fazer nada.
Camus importou essa sensação para uma França arrasada
pela guerra, envergonhada pelo que lhe sucedeu na guerra. Mas isso era apenas o
mundo que o cercava. Meursault vivia nesse mundo, mas sua recusa a agir e seu
comportamento às vezes de zumbi, não são produtos apenas da época. Seu Doppelganger Musa, em Istambul, reproduz
essa atitude mergulhado na rotina burocrática sem sentido de Kafka ou de
Bartleby.
A narrativa de Demirkubuz se baseia em longos planos
silenciosos, numa inexpressividade proposital e quase sonambúlica do ator que
faz Musa (Serdar Orcin) e num uso preciso e econômico da câmera.
Há uma sequência perto do final quando Musa é libertado
da prisão e o oficial discute o caso com ele, falando pelos cotovelos. Quando
ele alude ao crime, a câmera mostra Musa de frente e começa a girar para o lado
numa panorâmica lenta, e vemos que no lado direito do cenário foi reconstituída
a sala onde aconteceu o crime bárbaro, e onde tínhamos visto Musa antes,
conversando com as vítimas. O movimento da câmera continua descrevendo esse
semicírculo, volta a mostrar a parede por trás da mesa e o oficial, que
continua falando.
O espaço e o tempo são comprimidos de maneira elegante
para um único movimento que visualiza o passado e o presente num mesmo espaço
físico.
O filme turco, em vez de “adaptar” o romance francês,
prefere matá-lo e reencarná-lo em outro país, outra década, outras pessoas.
Isso dá mais liberdade ao diretor, que faz da narrativa original o que bem
entende sem que ninguém possa cobrar-lhe uma fidelidade da qual ele já abre mão
a priori.