“Meu gosto não se discute” é a fórmula cômoda que
encontrei para encerrar essas eternas discussões sobre “gostei” e “não gostei”,
“você tem (ou não tem) o direito de gostar de algo”, “seu gosto não pode servir
de mandamento para os outros”.
Nenhuma afirmação estética é universal. A estética tem
uma forma ramificada que se espalha por toda a variedade de contextos humanos,
de experiências humanas, as diferentes sensibilidades de tempos, de espaços. A
estética é condicionada pela História, pela Geografia, por tudo que influi na
mente individual e coletiva.
A experiência humana é rica, variada, divergente.
Eu tenho uma fórmula pessoal para avaliar o “Gostei Ou
Não Gostei” de todo mundo, inclusive o meu. É uma fórmula simples, que tenta
conciliar gostos coletivos e gostos individuais.
Digo assim porque todos nós, mesmos os mais
individualistas, os mais independentes, os mais personalistas, acabamos
obedecendo aos gostos coletivos da nossa época, da nossa classe social, da
geração de que fazemos parte, de algum grupo com aspirações a ser diferente e contestador.
Como já disse alguém: “tem certas coisas que nós gostamos
para que as outras pessoas gostem de nós.”
A fórmula de gosto pessoal que criei é simples:
Gosto = parâmetros
+ prioridades + preferências.
Uma grande parte das pessoas defende as próprias
preferências (“Eu não assisto filme de terror por nada nesse mundo”, “Meu negócio
é comédia e musical”, “Filme pra mim tem que ter crítica social, senão é
alienado”, etc.) mas não costuma refletir sobre seus parâmetros e suas
prioridades.
O que são parâmetros?
São os pares de conceitos que nos fazem acolher certas obras e descartar
outras. Têm a ver com essa coisa indefinível chamada “qualidade artística”, mas
não só com ela. São os nossos conceitos (muitas vezes pouco claros, mal
verbalizados) sobre o que é bom e o que é ruim. O certo e o errado. O bem feito
e o mal feito. O ético e o antiético. O importante e o irrelevante. O precioso
e o banal. O agradável e o incômodo.
Vou pegar essa última parelha. Eu vejo as comédias mudas
de Buster Keaton ou Chaplin, em primeiro lugar, porque são agradáveis (me fazem
rir), e só em segundo lugar pela sua importância na História do Cinema. Vejo as
piadas bobas de Chaves e Chapolin pela mesma razão: me fazem rir, me agradam.
Mas se eu aplico o critério “importante / irrelevante”, reconheço que Keaton e
Chaplin saem ganhando, e que os comediantes mexicanos, que acho simpáticos, não
criaram muito, em geral estão apenas desfiando o frango alheio pra fazer
estrogonofe.
(O que é uma profissão honesta como qualquer outra, e que
exerço com satisfação, quando preciso.)
Um espectador comum de cinema não precisa pensar nessas
parelhas de conceitos, mas um jornalista precisa, sim, porque ele se vê forçado
a produzir julgamentos de vez em quando, e precisa justificar seus vereditos.
O filme “X” ou “Y” pode ser chato, para o meu gosto, mas
pelo parâmetro de “precioso x banal” talvez ele ganhe pontos. Digamos que foi
um filme feito em condições precaríssimas, sob censura, registra fatos ou
aspectos importantes lá do seu país (Ucrânia, Guatemala, Laos, não importa
onde) – e por conta disso eu posso proclamar sua importância e defender sua
preservação, mesmo não tendo gostado de vê-lo. Que importância tem o meu gosto?
O filme não foi feito para me agradar. Foi feito para ser visto pela
humanidade, e há de agradar a alguém. É chato mas é precioso, sim. Para o
Cinema.
Do mesmo modo, o espectador que vai ao cinema no domingo
à noite, para se divertir, tem todo o direito de não gostar de Fellini Oito e Meio ou de They Live! – mas não tem o direito de
erigir o prazer dominical dele em critério absoluto e dizer que os filmes são
“umas porcarias” e as pessoas que gostam deles são “pseudo intelectuais”.
Para ter em mente esses parâmetros, é preciso deixar de
ser egoísta e não ver o cinema apenas como um passatempo feito para dar prazer
a mim, o reizinho do mercado, de ingresso-comprado em punho. Quanto mais a
gente entende os bastidores do cinema, o que é produção, o que é direção, o que
é o comércio, a publicidade, as ramificações financeiras e ideológicas dessa
indústria bilionária, a gente vai expandindo esse leque de parâmetros.
O mero consumidor, é claro, nem liga para isso.
Vem então o critério seguinte – prioridades. Em alguns momentos da vida alguns tipos de filmes são
mais importantes do que outros. Nas minhas décadas formadoras (1960-1970), filmes
de ficção científica, mesmo dos EUA, eram muito raros. Na minha coluna de jornal,
eu só faltava implorar: “Pessoal, por favor, vamos dar uma força aos filmes de
FC! Todos ao cinema!...”
Depois da geração Lucas (Star Wars), Spielberg (E.T.,
Contatos Imediatos) e outros, esses
filmes transformaram a indústria. Nos anos 2000, os filmes de Super-Heróis se
transformaram nos grandes blockbusters
atuais. Já estão fazendo mais mal do que bem ao cinema. É um cinema de clichês
em todo volume, tecnicamente e financeiramente hipertrofiado. Filmes à base de
esteróides anabolizantes, concentrados energéticos, e que estão fazendo mais
mal do que bem à ficção científica.
Ver e comentar filmes de FC deixaram de ser prioridade
para mim. Talvez na próxima década o sejam novamente.
As prioridades mudam. Eu já fui um defensor do cinema
brasileiro na linha do “compre o ingresso, e se não gostar, saia, mas compre
pra ajudar”. Já combati as chanchadas da Atlântida, e depois passei a gostar
delas. Já detestei o “western spaghetti” italiano, e hoje gosto. Por que?
Porque entendi melhor certas coisas, alterei meus parâmetros. E algumas coisas
que eram prioritárias deixaram de sê-lo.
Finalmente, vêm as preferências,
e é nesse território que a maioria das pessoas navega: é o território do “gosto
disso, não gosto daquilo”. Curiosamente, as nossas preferências são os nossos
critérios mais óbvios, mais evidentes – e mais obscuros. Gosto porque gosto,
dizem as pessoas, e a auto-análise se detém aí. Quando não encalha em
tautologias do tipo “gosto porque é bom”.
Eu admiro o realismo literário e cinematográfico, mas
tenho uma preferência pelas histórias que a todo instante estão botando o pé no
impossível, no bizarro, no estranho, no fantástico. Por que? Não sei. Vem desde
a infância. Mesmo no auge da minha admiração pelo Neo-Realismo italiano, quando
vi muita coisa de Vittorio de Sicca, Rossellini, os primeiros filmes de
Fellini, Antonioni, Pasolini, etc., me dava uma certa impaciência quando tudo
se resumia àquela “vidinha besta”, como dizia Carlos Drummond. Os melhores
filmes dessa turma, para mim, são os mais fantasiosos. Por que? Não sei. É a
qualidade da imaginação, do aparecimento de algo improvável, imprevisto,
impossível.
Quem escreve na imprensa tem a mania de colocar suas preferências
como parâmetro geral. “Eu não gosto de musicais. Esse filme é um musical.
Portanto, não deveria ter sido feito, nem exibido, nem assistido.” Críticos de
cinema fazem isso o tempo todo.
Tudo isso vale não apenas para o cinema, é claro. Vale
para literatura, para música, para qualquer tipo de arte, porque na arte existe
justamente esse entrançamento entre critério pessoal e critérios coletivos.
Nunca poderíamos ler tudo, assistir tudo, então somos forçados a escolher, e
escolhemos o que achamos agradável, ou importante, ou enriquecedor...
Ou então escolhemos na base da boiada, do impulso
coletivo, vamos ao cinema porque é com nossa turma, lemos um livro para
conversar nas festas com os amigos.
O que também não está errado, pois é assim que nos
alimentamos de outras opiniões, outros conceitos, vemos como é que pessoas
diferentes de nós reagem diante disso ou daquilo. Nunca existe um “gosto
pessoal” 100% individualista. Somos sempre um reflexo do nosso mundinho, que
por maior que seja é sempre pequeno, porque é do tamanho do que conhecemos.