segunda-feira, 3 de maio de 2010

1991) Criança não é burra (26.7.2009)



(ilustração: John Tenniel)

Se Lewis Carroll fosse vivo hoje e mandasse Alice in Wonderland para 50 editores de livros infantis, seria recusado por todos. Não quero dizer que os editores são burros, mas que ninguém sabe o que vai fazer sucesso. “Sucesso” envolve tantos fatores combinados que é a melhor maneira de assegurá-lo é cruzando os dedos, batendo na madeira e beijando um pé-de-coelho – coelho branco, de preferência. Alice fez sucesso entre crianças britânicas, com acesso a uma educação razoável, num mundo em que a leitura era, se não a única diversão, pelo menos a mais excitante e acessível nos longos meses de inverno, por exemplo. O resto foi bola de neve.

Não sabemos o que criança gosta. No Brasil, onde a literatura infantil sustenta centenas de pais e mães de família, a toda hora tem alguém batendo com a mão na testa e exclamando “Eureka!” Idéias brilhantes chegam diariamente via Sedex às editoras. Às vezes um editor concorda com entusiasmo. Arregaça as mãos, joga no mercado uma tiragem de 5 mil cópias... e frequentemente dá com os burros nágua. As crianças naquele ano estão querendo outra coisa. Qual? Não sei, nem J. K. Rowling sabe. Cada um joga na mesa as cartas que tem, cruza os dedos, etc.

Cinema é a mesma coisa. Cada roteiro de desenho da Disney/Pixar passa pelo pente fino de 30 mil especialistas: “Isso pode, isso não pode”. Os filmes acabam todos dando lucro, porque a técnica deles é fabulosa, e a máquina de divulgação é um Leviatã de cinco mil bocas. Mas alguns dão dez vezes mais lucro do que outros. Por que? O Leviatã tem cinco mil explicações, o que monta a nenhuma.

Uma das coisas mais inteligentes e perceptivas sobre o assunto foi dita recentemente pelo diretor francês Michel Ocelot, autor dos filmes de animação Kiriku e a feiticeira (1998) e Azur e Asmar (2006). Vi o primeiro desses filmes, um belo desenho de longa-metragem ambientado na África. Perguntado sobre como se deve fazer um filme para crianças, Ocelot, que está no Brasil para o festival Anima Mundi, respondeu: “Existe apenas uma regra para se fazer filmes para crianças: nunca fazer um filme para crianças. Um filme feito com a preocupação de que tudo seja compreendido por crianças não é apenas um filme ruim, mas é uma atitude equivocada. O trabalho de uma criança deve ser aprender, aprender e aprender mais. Para ela, quase tudo o que aparece na sua vida é novidade, e não compreender as coisas faz parte de seu cotidiano. A criança não se afasta completamente de uma história por não a ter entendido. Entre as novidades que surgem, haverá detalhes que ela compreenderá, porque suas mentes são muito espertas e ativas. Há coisas que ela adivinha. E há coisas, claro, que ela não entende mesmo, mas que guarda estocada no cérebro para usar no futuro”.

Isto é de uma lucidez notável. A criança aceita não entender uma coisa; é parte do seu cotidiano. Se na história que lê existir luz, ela aceitará que também existam zonas de sombra.

1990) A emoção do realismo (25.7.2009)




(maquete de Xangai)

Disse Sidney Sheldon, numa entrevista, que um dos aspectos que mais seduziam seus leitores era o realismo de seus livros – por mais mirabolantes que fossem suas tramas de espionagem “light” e de paixões tempestuosas. 

Ele referiu uma carta em que uma leitora dizia estar em tal ou tal país remoto onde ele havia ambientado um dos seus romances. Estava escrevendo aquela carta sentada à mesa de um restaurante que aparecia num trecho importante do livro. E dizia algo como: 

“É tudo exatamente como o sr. descreveu... As mesas, a decoração das paredes, o cheiro da comida, o vento que entra pelas janelas, o modo como a luz do sol ilumina o recinto... Obrigada por esta experiência maravilhosa!” 

E Sheldon concluía dizendo que não havia nenhum mistério nisso, ele tinha rascunhado o capítulo do seu livro justamente numa mesa desse restaurante. “Escreva sobre o que você conhece”, disse, “e outras pessoas acabarão reconhecendo aquilo”.

O episódio de Sheldon ilustra algo que chamo “a emoção do realismo”, aquela comoção súbita que nos assalta quando temos a sensação súbita de ver um pedaço da realidade transportado intacto para o mundo da representação. Ou vice-versa. 

A leitora de Sheldon leu primeiro o livro e depois visitou o restaurante, certamente em busca de confirmação para o que sentira. Talvez, se tivesse ido ao restaurante primeiro, por acaso, nem lhe desse muita atenção, e mal o reconhecesse quando o encontrasse no livro. 

A experiência estética “magnificou”, por assim dizer, a imagem do restaurante, e pelo menos para aquela leitora o tornou mais real. Sem contar que, de quebra, ao sentar no restaurante ela deve ter se sentido, por alguns instantes, “dentro de um livro”. Já experimentei essa sensação, e é muito agradável. Pensamos: “Aquilo que vi no livro existe mesmo, e agora eu faço parte dele”.

O cacife literário do Realismo repousa nesse respeito para com o mundo “daqui de fora”, que afinal de contas é o único que podemos compartilhar e conferir. A mãe de um amigo meu assistia sem muito prazer O Bebê de Rosemary de Polanski, até o momento em que percebeu, no nariz de Mia Farrow, umas pintinhas que – segundo ela – as mulheres grávidas costumam apresentar. Imediatamente afirmou: “Este filme é excelente!”. Sumiu o Diabo, sumiram os satanistas, sumiu o bebê hediondo. Ficou-lhe do filme (provavelmente) apenas aquele detalhezinho realista, única coisa que pôde reconhecer, e que a comoveu.

O arquiteto baiano Assis Reis contou, numa palestra, que durante um projeto de que fez parte mandou construir uma maquete de Salvador, imensa e detalhadíssima, que ficou algum tempo exposta no “hall” do Teatro Castro Alves. E viu uma família humilde, no meio da multidão, localizando ali o morro onde viviam, e alegrando-se em reconhecer a própria casa no meio das demais. 

É a emoção do realismo: o contato com uma obra fantasiosa e minúscula que acaba tornando mais verdadeiro e maior o nosso próprio mundo.





1989) Drimtim (24.7.2009)



(ilustração de Poty para Sagarana)

Num artigo recente no Globo, Luís Fernando Veríssimo usou essa expressão para se referir ao famoso “Dream Team” do basquete norte-americano, e, por extensão, a todos os times dos sonhos que são montados de vez em quando por clubes de diferentes esportes. Não vou falar dos times, falarei aqui da palavra, que me causou uma estranhezazinha quando a vi escrita pela primeira vez, mas logo em seguida entrou pela porta entreaberta do meu dicionário, escancarando-a, abancou-se na sala com um suco de laranja em punho, e a esta altura já vai com não-sei-quantos acessos.

Os brasileiros somos especialistas nesses atalhos fonéticos. Pegamos a pronúncia de uma palavra estrangeira e a escrevemos da maneira mais direta e tupiniquim possível. E aí estão palavras intensamente nossas como gol, buquê, chofer, lasanha, filme, matinê, uísque, chucrute... Eu mesmo vivo propondo aqui nesta coluna a grafia “saite” em vez de “site”. Quando pegar, passarei a propor “mause” em vez de “mouse” (não sei se pega, porque neste caso tem uma contaminação com “Mauser”, a pistola alemã que qualquer leitor de livros de espionagem conhece desde criancinha).

“Drimtim” pode contar, aliás, com um precedente parcial que muito o honra. Peguem seu Sagarana, vão até o trecho imortal sobre os “reis leoninos”, a aqueles dois longos parágrafos que equivalem a uma profissão de fé literária de Rosa, começando em “Sim, que, à parte o sentido prisco...” até “...escrevi no bambu”. Rosa sugere que diante de um gravatá, a gente sente uma comoção tão grande que dá vontade de chamá-lo “drimirim” ou “amormeuzinho”. Drimirim, amigos, não é mais do que dream + mirim, palavra inglesa e palavra indígena: meu pequeno sonho, meu sonhozinho. Uma palavra híbrida que pode parecer teratológica aos filólogos mais eugenistas, mas que em termos de sonoridade poética bem que podia fazer-se, logo, bem nossa e coletiva.

“Drimtim”, ou “drimtime”, é a mesma coisa. Talvez a única objeção técnica ao seu uso seja o fato de que ela não segue a formação espontânea da língua. Por esta, temos que colocar a nasalização bilabial (o “m”) somente antes das consoantes bilabiais (o “b” e o “p”), reservando para as demais o “n”. Essa questão da formação espontânea da língua – os modos portugueses/brasileiros de encadear os sons – é importante. É uma visão de cada língua como um organismo diferente dos demais, e é algo que deve ser preservado. Mas se já recebemos de volta as letras K, W e Y, não vejo problema em acolher uma nasalizaçãozinha que foge um pouco ao padrão. Porque, convenhamos, dizer “drintim” não seria a mesma coisa.

A palavra pega? A palavra não pega? Não sei, mas gosto de acompanhar o crescimento das palavras, das plantas e das nuvens. E se falei alguma barbaridade, que me perdoem os glossopedistas e os filólogos, mas minha entrada preferida no templo do idioma é por uma janela quebrada que tem na ala esquerda do almoxarifado.

1988) “O Clube do Filme” (23.7.2009)



Este simpático livro do canadense David Gilmour (nenhuma relação com seu xará que toca no Pink Floyd) fala da curiosa solução que ele encontrou para lidar com um filho adolescente que não queria estudar, não queria ir à escola, fumava feito uma caipora, e vivia roendo pela namorada. Quando o garoto, Jesse, começou a ser reprovado, ele – que trabalhava como crítico e roteirista de cinema – propôs um acordo: “Tudo bem, você larga a escola, dorme até a hora que quiser. Mas com duas condições: nada de drogas, e toda semana vai ter que assistir e debater três filmes escolhidos por mim”. Trato feito, e o livro se desenrola a partir daí.

É típico que o primeiro filme escolhido por Gilmour tenha sido Os Incompreendidos de Truffaut, a crônica dos garotos rebeldes, perdidões, fundamentalmente sinceros, revoltados com a hipocrisia dos adultos e os rituais idiotas a que estes os obrigam. Mas o gosto de Gilmour é eclético. Entre as centenas de filmes vistos e debatidos com o filho estão faroestes italianos, filmes-cabeça, policiais “noir” dos anos 1940, musicais da Metro, comédias adolescentes bobas, ficção científica, thriller, histórias românticas... Com sabedoria, Gilmour não tenta empurrar doses de Cinema de Arte e de adaptações dos clássicos para compensar a interrupção dos estudos do filho. Ele sabe que o garoto precisa de motivação para encarar o mundo, precisa conversar, precisa esquecer as dores-de-cotovelo (o garoto vive se apaixonando pelas meninas erradas), e que qualquer filme pode ser a porta para uma discussão que vai dar sempre nos mesmos lugares.

Nunca li nada de Gilmour, mas fiquei curioso pelas suas críticas cinematográficas. Seu gosto difere muitas vezes do meu, mas me senti menos culpado por gostar de Uma Linda Mulher quando o vi dizer que “não existe no filme uma cena verossímil sequer, mas é uma história tão envolvente, contada de forma tão eficaz, com uma cena agradável atrás da outra, que mesmo sendo um filme idiota ele prende a atenção”. Ele e o filho se envolvem em conversas ping-pong (“— O que tornava um filme bom, segundo Howard Hawks? – Três cenas boas e nenhuma ruim”). Ele cria módulos (conjuntos de filmes semelhantes) a que chama de “Tesouros Enterrados” ou “Prazeres Culpados”. O filho cresce, torna-se compositor de rap, ganha e perde garotas e empregos. Os anos passam, e o “clube do filme” continua a ser o espaço que os dois têm para discutir tudo, principalmente sexo, drogas, rock-and-roll e cinema.

O livro é interessante também porque revela certa distâncias culturais inevitáveis. Algumas atitudes do pai canadense nos parecem absurdas ou ingênuas; algumas de suas angústias são por coisas que um pai brasileiro tiraria de letra, aplicando um “cascudo” no transgressor e pronto. Mas não se discute sua coragem em tomar para si (e para o cinema) a tarefa de educar mais um garoto que a escola (e seu sistema paleolítico de “matéria que cai na prova”) perdeu.

1987) Monólogo de um privilegiado (22.7.2009)



“Não pensem que tudo isto nos veio de graça. Nada vem de graça, nada no mundo cai do céu. Nem mesmo a chuva – perguntem aos sertanejos, que vivem bajulando os deuses para conseguir uma neblinazinha de vez em quando. A riqueza dos meus antepassados foi construída com sangue e suor de muita gente, é riqueza com pedigri humano. Os detratores dirão que quem verteu o sangue e o suor foram os escravos e depois os operários cuja mais-valia hemorrágica durante um século criou a luz do nosso sobrenome. Que seja. Já que o passado é imutável, inatingível, o jeito é honrar o sacrifício de tantos para que não tenha sido em vão.

“Não esperem me ouvir alegar que “não tenho culpa de ser rico”. Ser rico não acarreta culpa, e, para mostrar minha imparcialidade, direi que ser pobre também não. Só temos culpa das nossas ações. Nossa classe social foi decidida por um terremoto, uma ruptura, uma clivagem que aconteceu trezentos anos atrás. Ficamos nós aqui e os outros lá. Culpa nenhuma. Remorso nenhum de ser tudo que sou. Resolução inabalável de continuar a sê-lo por mais mil anos.

“E ninguém fique de olho grande nas minhas mordomias, nos meus regabofes, no meu “dolce far niente”. Fariam o mesmo, no meu lugar. Viver bem não é uma decisão individual, é uma condição de classe inescapável. Existe uma força gravitacional que nos arrasta na direção desse estilo de vida, uma força à qual os demais são imunes. Eu não questiono: submeto-me. Vou ao Caribe ou aos Alpes quando me dá na telha, entro na matriz de uma loja portando apenas um cartão de crédito e saio com trinta pacotes, compro por impulso uma casa que vi de passagem pela janela da limusine. E daí? Não faço mais do que o inevitável.

“Somos lemmings felizes, e nos acotovelamos em êxtase pelas aléias do Paraíso. Dignos da mesma comiseração concedida aos que mourejam nas minas de carvão da China ou nos lamaçais diamantíferos de Serra Leoa. Nada daquilo foi escolhido voluntariamente. É tão difícil para um xeique saudita tornar-se um operário da construção civil quanto o inverso. As poucas exceções a essa regra estão todas no cinema, nas telenovelas e nos romances para costureirinhas.

“Os humilhados e ofendidos nada têm a perder na vida senão as correntes que os aprisionam. Nós também. A diferença é que nossas correntes são de outra natureza, foram forjadas para nosso conforto e deleitação. Somos incapazes não apenas de escapar delas, como de sequer considerar essa possibilidade, e nesse sentido somos mais prisioneiros do que o labrego que quebra pedras no sol quente e sonha em fugir dali para tornar-se verdureiro ou pescador. Para estes, coloca-se de vez em quando o sonho ou a ânsia de outra vida. Esse sonhos, essa ânsia, nos são proibidos. Podemos falar a seu respeito, mas sabemos que essa hipótese é como a raiz quadrada de menos 1: uma coisa auto-contraditória, que em sua própria enunciação anula a própria existência.”