segunda-feira, 17 de março de 2008

0269) A força da Tradição (30.1.2004)




A Tradição gera a Vanguarda, e gera o Mercado. Ninguém faz trabalho que não seja em cima de uma tradição, mesmo quando nega ou parece ignorar que essa tradição existe. Os performáticos-de-bienal, por exemplo, que fazem um esforço danado para dizer às pessoas que não esperem deles uma natureza-morta pintada a óleo, estão aproveitando-se de uma tradição de “instalações” que remonta no mínimo aos dadaístas de depois da I Guerra Mundial.

As Tradições são sempre específicas a cada atividade. Quando um garoto de cabelo verde e piercing nas pálpebras passa o dia praticando escalas de guitarra, ele certamente está seguindo uma tradição qualquer, seja a de Van Halen, seja a de The Edge. Mesmo quando se trata dessas bandas punk em que os garotos compram os instrumentos hoje e estream amanhã sem saberem tocar, existe uma tradição punk de fazer isto. Os gestos estéticos fundadores, originais, são raros. Os que dão certo passam a ser a vanguarda; mas sempre existe uma Tradição, que é o chão onde a Vanguarda pisa.

Os jovens são os mais desconfiados com a palavra Tradição, que para eles tem um cheiro de coisa velha, arcaica, superada. O que é uma grande bobagem, pois quando o sujeito é jovem todo o restante é mais velho do que ele. Quando um jovem artista abre os olhos para o mundo, para onde quer que ele olhe ele só vê a Tradição, só vê O Que Foi Feito Antes, assim como quando olhamos para um céu estrelado não vemos essas estrelas do jeito que elas são agora, mas do jeito que cada uma delas era milhares de anos atrás. Sabemos que algumas dessas constelações já se desarrumaram, que algumas das estrelas que produziram essas luzes já se consumiram em cinza nuclear; mas para efeitos práticos, como a navegação marítima, elas continuam servindo. Assim é a Tradição.
A Tradição corre o perigo de ser restritiva e sufocante quando tentam torná-la uma coisa sagrada, como ocorre às vezes com a cultura popular, o folclore. Já que é Tradição, baixa-se uma lei dizendo que não pode mais mexer nisso, naquilo, naquilo-outro. Sociedades vagarosas, reacionárias, também usam a Tradição como pretexto para boicotar novidades. O resultado é que surgem movimentos de vanguarda radicais, violentos, que tentam enxovalhar a Tradição, ridicularizá-la, livrar-se desse peso insuportável. É compreensível esse niilismo, mas ele é sintoma passageiro, é distorção menor.

Tradição é de todos, é a memória, é o Passado e o Presente. O poeta Pablo Neruda, num poema famoso, disse do dicionário: “Dicionário, não és tumba, sepulcro, féretro, túmulo, mausoléu, senão preservação, fogo escondido, plantação de rubis, perpetuidade vivente da essência, celeiro do idioma.” A Tradição é tudo isto, e para o que fazemos agora nada seria mais honroso do que ser um dia incorporado por ela. A Tradição que herdamos é a soma final de tudo que era forte, de tudo que sobreviveu.

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