terça-feira, 27 de dezembro de 2022

4897) Leituras 2022 -- 4 (27.12.2022)


Não costumo fazer listas de “dez melhores”, mas sempre gosto de dar um balanço, no fim do ano, de alguns livros que li e que por variadas razões não comentei aqui no blog. Quisera eu ser daqueles sujeitos organizados que “ficham” cada livro que leem, redigindo pelo menos meia página de observações. Não é o meu caso. Estas anotações, porém, podem servir como dicas de leitura, ou para que o leitor compare com suas próprias impressões.
 

ENSAIO LITERÁRIO
“Riso e Melancolia” (Cia. Das Letras, 2007), de Sérgio Rouanet
Li este livro em paralelo com a leitura de Jacques, o Fatalista, de Denis Diderot. O livro de Rouanet é uma teorização (e uma detalhação aplicadamente acadêmica) de um tipo de romance que, para meu gosto, anda meio esquecido. Estamos numa época de thrillers, de narrativas super-amarradas com “começo-meio-fim”, de histórias com um frenético realismo epidérmico; romances de onde o autor parece estar ausente, a não ser como enunciador-sem-face daqueles episódios.
 
Rouanet teoriza o que ele chama do “narrador shandiano”, tomando como modelo o Tristram Shandy de Laurence Sterne, e usando como exemplos obras de Diderot (Jacques...), Xavier de Maistre (Viagem ao Redor do Meu Quarto), Almeida Garrett (Viagens na Minha Terra) e Machado de Assis (Brás Cubas).
 
A tese principal de Rouanet é que nestes livros o narrador (seja onisciente, seja um dos personagens) é o condutor principal do fio narrativo, desobedecendo às leis do tempo e espaço, produzindo digressões intermináveis, confundindo a cronologia interna, dirigindo-se ao leitor de forma desabusada e constante, comentando sem parar a excentricidade e o comportamento patético das pessoas, quebrando a “quarta parede” o tempo inteiro, abrindo mão da “ilusão ficcional” que a literatura realista buscou tão ansiosamente.
Aqui, meus próprios comentários anteriores sobre o livro de Diderot:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/10/4871-jacques-o-fatalista-um-romance.html
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/06/4587-uma-literatura-ao-res-do-chao.html
 
 

CLÁSSICOS
“Seven Gothic Tales” (1934), de Isak Dinesen
A baronesa Karen Blixen, que usava esse pseudônimo, era dinamarquesa e escrevia num inglês opulento, impecável. Seus contos são quase sempre ambientados num século 19 de salões, castelos, mansões, famílias aristocráticas. Estes contos não são propriamente góticos, a não ser num sentido muito amplo, de uma realidade transfigurada onde a aparência oprime a essência, a forma determina o conteúdo. Dois são fantásticos: “The Monkey” é uma história de transformação sobrenatural, “The Supper at Elsinore” um conto de fantasma), mas o tema subjacente de todos é a dualidade real/fantasia, história acontecida versus história contada (ou imaginada), a implacabilidade dos acasos e dos destinos.
 
Uma coisa fascinante no estilo de Isak Dinesen é que cada personagem seu é capaz de, no meio de uma ação movimentada ou de uma situação de suspense, começar a contar a própria história – e com isto adiar por cinco ou dez páginas a continuação da história principal. Algo que qualquer redator de “Como Contar Uma História” desaconselharia vivamente – “porque iria quebrar o ritmo, desviar a atenão, etc. etc.”. Cada conto de Dinesen acaba se transformando, graças a esse recurso bem século 19, numa antologia de pequenos contos, porque cada um daqueles personagens aparentemente insignificantes tem sua vida, sua história, suas aventuras, seus episódios sombrios ou eufóricos... Como em certos videogames onde basta ao protagonista deter seu cavalo no meio de uma estrada e interpelar um camponês que trabalha obscuramente na plantação para ficar sabendo de uma história não apenas extraordinária e chocante, mas de importância crucial para a aventura do próprio cavaleiro – que talvez pudesse ter passado direto, a toda brida, sem sequer perceber que o camponês estava ali.  Os contos de Isak Dinesen são um tributo permanente à Estória, como grafava Guimarães Rosa.
 

AUTOR NACIONAL
“O rastro da lesma no fio da navalha” (Patuá, 2022), de Adérito Schneider
Contos de prosa rápida, precisa, numa sucessão de cenas cruéis ou estranhas. Há um leit-motif que retorna em várias histórias, uma menina morta que é repetidamente sepultada ou afastada, mas sempre retorna para assombrar o bairro. Há histórias de violência brutal e gratuita (“Road Movie”, “O Assalto”), o homem que vira executor de jacarés meio por acaso (“Do fundo daquele lamaçal, eu tirei um jacaré e o matei”), a impressora que parece mal-assombrada (“Magenta”). Alguns contos são em forma de argumento ou roteiro de filme, mas no geral todos compartilham a mesma urgência, a mesma rapidez na tentativa de registro de uma realidade que dá voltas sobre si mesma o tempo todo.
 



INSÓLITO
“Cold hand in mine” (1975), de Robert Aickman
Robert Aickman, um autor pouco traduzido no Brasil, ao que eu saiba, é um desses ficcionistas inquietantes empurrados à força para dentro da gaveta do gênero “Horror”, mas não é horror o que seus contos produzem. É estranheza, descolamento, desorientação.  Para a obra de pessoas como ele prefiro usar o termo “o Insólito”. Em vez de produzirem a descarga catártica, previsível, diante de horrores monstruosos ou de mutilações brutais, seus contos narram uma sucessão de situações espantosas, inquietantes, mas organizadas numa estrutura de aparente non sequitur, que deixa as descargas emotivas todas presas dentro de nós. Não sabemos como descarregá-las, porque a cada episódio a história vira uma esquina numa direção inesperada e sem respostas visíveis. O leitor não se sente sepultado vivo; ele se sente (para usar uma expressão atual) “sem chão”.
 
Ler Lovecraft é algo “cozy”, reconfortante, aconchegante. Já sabemos o que vamos encontrar ali. É como assistir os velhos filmes de terror da Hammer Films, estrelados por Christopher Lee ou Peter Cushing.  Ler Aickman é como ver um filme de David Lynch.
 



EXPERIMENTAL
“A Visit from the Goon Squad” (2010), de Jennifer Egan
Egan é autora do excelente O Torreão (“The Keep”). Li no original, mas este livro saiu no Brasil com o título A Visita Cruel do Tempo (Intrínseca, trad. Fernanda Abreu). É aquele difícil e fascinante gênero de “romance de contos” – uma série de histórias mais ou menos independentes, interligadas por alguns arcos narrativos, ou pela simples presença de personagens de outras histórias. Os enredos envolvem bandas de rock, mercado fonográfico, gente rica e neurótica querendo ocupar o tempo livre, histórias de amor bem ou mal sucedidas... Ela entra e sai com facilidade da “voz interior” dos protagonistas de cada conto, e tem um prazer especial em criar situações bizarras, improváveis, cuja existência depende apenas do fato de que as pessoas vivem fora da realidade, são “habitantes da bolha” e por isso praticam atos patéticos, cruéis, engraçados, irremediáveis.
 
 

CLÁSSICOS
“The Street of Crocodiles” (1934, trad. Celina Wieniewska), de Bruno Schulz
Schulz é apontado por muita gente como “o Kafka polonês”. Este livro é também uma série de contos interligados, numa atmosfera soturna típica da Europa Oriental. Não é apenas Kafka, é aquele tipo de alucinação fluente do Expressionismo Alemão, um mundo taciturno sobre o qual se abatem pesadelos sem motivo. Bruno Schulz (1892-1942) era escritor e artista plástico, foi morto pelos nazistas. Este livro tem edição brasileira com o título de Lojas de Canela e Outras Narrativas (Ed. 34, 2019). O termo “realismo mágico” acabou sendo contaminado, via América Latina, de calor, de frutas, rios, batalhas ensolaradas, morenas fatais; mas pode-se argumentar a existência de um “realismo mágico” do Leste europeu, feito de neve, sótãos, matadouros, vultos encapotados, capelas góticas, becos tortuosos que mudam de lugar e abrem espaço para uma cidade de pessoas sem rosto.
 



POESIA
“O Truque da Carta e mais 11 Cordéis” (Rio, Ed. do Autor, 2022), de Mário Bag
O termo cordel é usado hoje em dia de forma às vezes excessivamente liberal, sem discriminação, para qualificar qualquer formato de poesia feita em verso de redondilha e com dicção coloquial. É um pouco como hai-kai, que está sendo usado para indicar qualquer poeminha curto entre uma e dez linhas mais ou menos.
 
Mario Bag (“disclaimer”: ele é ilustrador de dois livros meus) está migrando aos poucos da ilustração para o cordel – desta vez o cordel tradicional, canônico, escrito em sextilhas de versos setissílabos. Conforme o figurino. Depois de Mitos e Lendas do Folclore (2013), ele lança esta coletânea de poemas curtos (que dariam folhetos de 4 ou 8 páginas), “versando” histórias populares da Rússia, Lituânia, Groenlândia etc., além de enredos tirados da música popular (“Shame and Scandal in the Family”) ou dos clássicos de terror (“A Pata do Macaco”). E quando o leitor compra os versos do poeta leva de brinde as ilustrações do artista.
 



CLÁSSICOS
“Kwaidan” (1904), de Lafcadio Hearn
Eu sou um leitor antiquíssimo de histórias de fantasmas, histórias de assombração, ghost stories derivadas principalmente do modelo britânico e do modelo alemão. O problema com esse gênero é que histórias de fantasmas versam quase todas sobre pessoas que morreram e cujo espírito reaparece no mundo material (para assustar alguém, vingar-se, pedir perdão, etc.). Depois que se lê alguns milhares de histórias assim, como é o meu caso, fica tudo parecido, meio previsível. Já as histórias de terror japonesas, de que Lafcadio Hearn foi um colecionador dedicado (ele passou os últimos 15 anos de sua vida no Japão, constituiu família japonesa, e por lá morreu) mantêm o lugar comum da “reaparição dos mortos”, mas dão nisso uma bela injeção de outros elementos, seja da cultura e religião locais, seja da psicologia (japoneses reagem de modo diferente dos europeus). Kwaidan (que foi adaptado ao cinema em 1964 por Masaki Kobayashi) é uma das várias coletâneas de Hearn com histórias que, além de assombrar, surpreendem.


POESIA

“O Sono dos Humildes” (Patuá, 2021), de Alexei Bueno

Alexei Bueno é um dos defensores quixotescos da forma-fixa na poesia (tal como eu), e poucos a exploram tão bem quanto ele. Na poesia atual, um oceano de versos que não enxergam a si próprios, a forma fixa traz uma utopia de rigor e flexibilidade, porque ela estabelece uma medida, e cabe à voz do poeta forçar essa regra da métrica e da rima de todas as formas possíveis. Alexei usa formas variadas para refletir sobre a vida, a morte, a materialidade do instante, como em “Às Cegas”:

 

(...) Há um ser sem tempo que não concebemos.

 Que nos faz recolhendo-se ao seu ser.

Dentro do fora dele nos movemos

Sem nunca o conhecer.

Nosso acidente nada alterará.

Mas por que existe? O sempre nasce da hora

Em que o instante se apaga, o que aqui há,

E este sol negro, o agora.

 

 

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