(desenho: Luís Jardim)
O oitavo conto do livro Primeiras Estórias (1962) de
Guimarães Rosa é uma não-história, um não-enredo. Ele mostra uma situação
lembrada e descrita, mas que não se conclui num desfecho. Um redator de “Manuais
de Escrita Criativa” devolveria o texto ao autor, dizendo: “Isto aqui não é um
conto, não tem começo, não tem meio, não tem fim. Vai ser muito difícil
colocá-lo no mercado. Reescreva.”
Tem ficado cada vez mais nítida (e mais forçada) aqui no
Brasil a idéia tipicamente européia e norte-americana de que toda história tem
que ter começo, meio e fim. É como aquele pintor do século 16 que preconizava:
“Toda pintura a óleo deve representar uma batalha, uma cena religiosa ou o
retrato de um nobre – senão, para que se dar o trabalho de pintar um quadro?!”.
Não tenho nada contra a idéia do “conto em forma de
seta”, a narrativa que aponta toda para um desfecho. A maioria dos meus contos
segue exatamente esse formato. Apenas acho que não é a única forma, nem a mais
importante, nem sequer a mais “colocável no mercado”.
Guimarães Rosa tinha seus formatos próprios de história.
Eu diria que o formato de “Nenhum, Nenhuma” é o de um diafragma de câmera
fotográfica. Algo meio circular, meio em forma de rosácea, que se abre a partir
do centro, deixa entrever um ambiente, um grupo de pessoas conversando num
cenário, e depois se fecha novamente.
E nesse abrir e fechar-se, e deixar passar a luz, ele
pode dirigir seu foco para um detalhe, para uma pessoa, para o ambiente em
geral.
O Menino (olha ele aqui, o mesmo Menino com inicial
maiúscula dos contos de abertura e encerramento do livro) está passando uns
dias numa casa de fazenda de alguém da família. Desse período curto, mas
confusamente revelatório, ele guarda uma lembrança que tenta emergir e depois
tenta esconder-se novamente, à maneira esquiva de certas lembranças infantis.
Por isso mesmo, e pela falta de enredo articulado,
novidadeiro, penso que se trata não de história inventada, como se
autoproclamava a de Augusto Matraga, mas de um episódio autobiográfico, alguma
coisa da infância de Rosa, senão não tinha nenhuma razão do próprio, nascido em
1908, fazer questão de destacar:
Na verdade, a data não poderia ser aquela. Se diversa, entretanto,
impôs-se, por trocamento, no jogo da memória, por maior causa. Foi a Moça quem
enunciou, com a voz que assim nascia sem pretexto, que a data era a de 1914? E
para sempre a voz da Moça retificava-a.
Na tal fazenda onde o Menino está de passagem, há a Moça,
figura ao mesmo tempo maternal e erótica nas fantasias dele. Há o Moço,
pretendente dela, amigo da família do Menino, mas por uma questão de rivalidade
edipiana o Menino vê o Moço com “antipatia”, “rancor”, “ciúmes”. Há o Homem, um
velho silencioso, distante, meio carrancudo, que é também o pai da Moça.
E há um quarto da casa ao qual nos primeiros dias o
Menino tem acesso proibido (como o quarto proibido na casa do Barba Azul), e no
qual ele vem a descobrir, com o passar dos dias e o afrouxamento dos cuidados,
que mora uma velha, a Nenha, “uma velha, uma velhinha – de história, de estória
– velhíssima, a inacreditável”. Nenha é tão velha que não apenas não lembra
mais quem é, mas ninguém da família sabe como ela foi parar ali.
Antes de vir para a fazenda, ela ter-se-ia residido em cidade ou vila,
numa certa casa, num Largo, cuidada por umas irmãs solteironas. Mesmo essas,
mal contavam. Dera-se que, em tempos, quase todas as antecedentes mulheres da
família, de roca e fuso, sucessivamente teriam morrido, quase de uma vez, do
mal-de-semana, febre de parto; daí, rompido o conhecimento, os homens se
mudando, andara confiada a estranhos a Nenha, velhinha, que durava, visual,
além de todas as raias do viver comum e da velhez, mas na perpetuidade.
As mulheres velhas são literariamente um arquétipo da
sabedoria pragmática, pré-livresca, das famílias unidas por laços de afetos e
vivência, não por sobrenomes. Figuras iniciáticas, repositório concentrado da anima. Talvez a mais simpática dessas,
na obra de Rosa, seja a Lina da “Estória de Lélio e Lina” (em Corpo de Baile, 1956). A Nenha deste
conto é remota até a si mesma, não se alcança, não se lembra – emite apenas
alguns murmúrios, e uma presença.
Me vem à memória o conto “Novecentas Avós”, de R. A.
Lafferty, sobre um planeta onde as pessoas não morrem. Ficam pequenininhas,
cada vez menores, e são colocadas pelos descendentes em porões especiais, onde
continuam a diminuir. Com o passar dos séculos, ficam do tamanho de bonecas, depois
do tamanho de insetos. O narrador é levado a um desses porões e pergunta a uma
daquelas microscópicas avós como começou a raça humana daquele planeta. Ela
começa a rir, todas as outras a imitam, e “era como o som de um bilhão de
micróbios gargalhando”.
O que tem tudo a ver com a descrição que o Menino faz da
Nenha: “...ela seria apenas a mãe de uma
outra, de uma outra, de uma outra, para trás”.
Escrevi sobre o conto aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/12/1428-novecentas-avos-11102007.html
No conto de Rosa, a velhinha diminui, sim: “Traziam-na, para tomar sol, acomodadinha
num cesto, que parecia um berço”. Mas sua interferência na estória é apenas
de catálise, porque os cuidados que a Moça tem com ela despertam o ciúme do
Moço, seu pretendente, que começa a questionar para quê tantos cuidados, até
porque o Homem, pai da Moça, está “desenganadamente
doente, para qualquer momento, mortal”.
O vislumbre da morte parece tornar o Moço impaciente, e o
Menino presencia e descreve o casal jovem discutindo a relação, discutindo o
que é o morrer, o querer, o lembrar. Ele e a Moça ficam de cara feia. E no dia
seguinte ele chama o cavalo, monta, e leva o Menino de volta para a casa dos
pais, de onde o trouxera. Acabou-se o passeio.
O trecho final é o regresso do Menino à casa, mas com a
visão transformada por esse episódio.
Nunca mais soube de nada do Moço, nem quem era, vindo junto comigo.
Reparei em meu pai, que tinha bigodes. Meu pai, estava dando ordens a dois
homens, que era para levantarem o muro novo, no quintal. Minha Mãe me beijou,
queria saber notícias de muita gente, olhava se eu não rasgara minha roupa, se
tinha ainda no pescoço, sem perder nenhum, os santos de todas as medalhinhas.
E eu precisei fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois:
“ – Vocês não sabem de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que,
algum dia, sabiam!...”
E eles abaixaram as cabeças, figuro que estremeceram.
Porque eu desconheci meus Pais – eram-me tão estranhos; jamais poderia
verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?
Veja-se a sutileza desta pergunta final, porque o conto é
narrado na terceira pessoa, sempre se referindo a “o Menino”, e só no trecho
transcrito acima as recordações se tumultuam todas e se derramam incontíveis na
confissão pessoal. Era eu, o Menino. Foi comigo, essa coisa que eu não lembro
direito como foi. Seria isto, psicanaliticamente, o momento da cristalização do
Eu?...
É um episódio sobre velhice, morte, amor, lembrança. Uma
semi-recordação fundamente escavacada, e exumada aos pedaços, como um fóssil
arrancado por um trator. A figura do Pai e da Mãe, talvez, compreendidos agora não como entidades fixas, mas como seres também arrastados pelo fluxo do Tempo, sujeitos à juventude, à velhice, à morte.
Guimarães Rosa viveu em Paris entre 1948 e 1950, como
primeiro-secretário e conselheiro da embaixada do Brasil. Voltou ao Brasil em
março de 1951, para ser chefe de gabinete do Ministro João Neves da Fontoura.
Alguém já me disse, mas nunca confirmei essa informação,
que nessa estadia em Paris ele teria feito análise com Jacques Lacan, numa fase
anterior à dos Seminários que tornaram Lacan famoso. Mesmo que não seja verdade,
faz um certo sentido. A obra do autor mineiro tem a reiterada busca da
infância, a mutabilidade das lembranças exumadas, o uso do trocadilho como
revelação e descoberta, o emprego de recursos da álgebra e da geometria como
formas de expressão literária. Para procurar (como diz o Menino) “o luar do meu mais-longe”.
(J. G. Rosa, menino)
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