O que a gente chama de obra de vanguarda são obras que,
paradoxalmente, muitas vezes refletem sobre o passado, sobre a retaguarda,
propondo uma revisão de coisas que tínhamos como certas e definitivas – como a
linguagem de uma arte qualquer, a pintura, a música, o cinema.
Estamos plácidos, satisfeitos, contentes com o que já
sabemos e o que já dominamos. E certas obras de vanguarda vêm nos cutucar e nos
perguntar: “Tem certeza de que é isso mesmo?”.
São as obras que nos convidam à famosa “ressignificação”,
palavrinha que anda na ponta da língua de todo mundo. Vamos ressignificar.
Vamos repensar. Vamos reinventar. Vamos redefinir. Como é mesmo essa história
de que o Far-West americano era todo limpinho?... De repente aparece uma coisa
plebéia e mal-educada como o “western spaghetti”, cheia de Ringos e Djangos
bêbados, cuspindo, malcheirosos, caubóis que trocam de calça um vez por ano... Olhem
só, era um cinema que ressignificou uma indústria inteira. Era de vanguarda, e
a gente não sabia.
Alguém poderia fazer um filme de vanguarda com vampiros?
Desta vez não falo apenas em filmes comerciais que questionam o gênero dentro
do próprio gênero. Estou pensando num filme como Cuadecuc Vampir, de Pere Portabella (1970). É como a história de
Drácula narrada por Andy Warhol. Ou como o Nosferatu
de F. W. Murnau refilmado por Jean-Luc Godard – não o de Viver a Vida; o de Imagem e
Palavra.
O filme está aqui, no YouTube, para tranquilizar os
leitores que se queixam às vezes (com razão) de que eu gosto de comentar filmes
que ninguém viu, ninguém tem, ninguém encontra:
https://www.youtube.com/watch?v=6yu4K6GPWCY&ab_channel=Nicol%C3%A1sValencia
Em 1970, o diretor espanhol Jesus Franco queria adaptar o
romance Drácula (1897) de Bram
Stoker, com Christopher Lee no papel principal, e garantiu ao ator que seria uma
adaptação fiel. Lee partiu para a Espanha, pois dizia já estar enjoado de fazer
o vampiro em histórias sem pé nem cabeça, muitas vezes mais próximas do
ridículo do que do terror.
O filme, Conde
Drácula (1970), não saiu grande coisa, mas tem pelo menos dois elementos
ausentes nos demais: a presença do norte-americano Quincey Morris, personagem
importante do livro, que todas as adaptações resolveram limar; e mostra um
Conde que começa velho e vai remoçando à medida que saboreia o sangue das moças
londrinas. É um filme relativamente fiel ao livro, mas vagaroso, cheio de
planos desnecessários, com um elenco esforçado (tem até o doido Klaus Kinski no papel do doido Renfield) mas nem sempre eficaz.
O crítico Jonathan Rosenbaum, cuja opinião respeito muito,
o considera “um dos piores filmes de horror já feitos”, mas faz a ressalva de
que sem ele não existiria este média-metragem de Pere Portabella, que ele
considera um “filme prodigioso”. Cobrindo para o Village Voice o Festival de Cannes de 1971, Rosenbaum achou o filme
de Portabella “o filme mais original do festival e o mais sofisticado em seu
audacioso modernismo”.
(Foi o ano em que foram exibidos Morte em Veneza de Visconti, The
Go-Between de Joseph Losey, Johnny
Got His Gun de Dalton Trumbo, O
Amanhã Chega Cedo Demais de Jack Nicholson, Procura Insaciável de Milos Forman, Pindorama de Arnaldo Jabor, THX-1138
de George Lucas e outros.)
Aqui, o comentário de Rosenbaum:
https://news.google.com/newspapers?id=J3pIAAAAIBAJ&sjid=H4wDAAAAIBAJ&pg=6434,5448189
O que é o filme? Bem, enquanto Jesus Franco fazia seu Conde Drácula, que mesmo com toda
fidelidade stokeriana não é melhor que as produções da Hammer Films naquela
época, Portabella rodava com sua câmera os mesmos planos, fazendo uma espécie
de “making of” do filme do outro. Cuadecuc Vampir é uma mistura de filme
de ficção (porque acompanha tintim por tintim a narrativa do filme de Jesus
Franco) e documentário, porque mostra em planos rápidos mas evidentes o
trabalho da equipe, dos cinegrafistas, dos técnicos de efeitos especiais
(soprando neblina, ajeitando maquiagem, etc.) e momentos de descontração dos
atores, que sorriem e acenam para a câmera mesmo quando estão com a boca
coberta de sangue, entre uma tomada e outra.
O filme é mudo, e tem a fotografia completamente
estourada, em preto-e-branco (o filme de Jesus Franco é colorido), o que o deixa muito parecido com o Nosferatu de
Murnau. Na trilha sonora, nenhuma voz dos atores, somente sons aleatórios – e
entra aí o elemento Godard. Estrondos, pancadas soturnas sem qualquer sincronia com o que aparece na tela, inserção brusca de música orquestral melosa,
rapidamente cortada... A trilha sonora é uma sucessão de silêncios e sustos.
Os últimos minutos do filme têm pela primeira vez som
sincronizado, e mostram Christopher Lee, sentado no camarim, lendo um trecho do
romance de Bram Stoker, onde é descrita a cena da morte do vampiro.
Cuadecuc (que
significa algo como “a cauda da cobra”) pertence ao ramo desconstrutivo das
vanguardas, em que alguém pega uma obra muito conhecida do público e nela
interfere com ruídos, paródias, cortes, justaposições, comentários, variantes
etc.
Obras desse tipo são uma homenagem ao original, mesmo quando o menosprezam, pois não existiriam sem a fama do original. Quando Marcel Duchamp põe um par de
bigodes na Mona Lisa essa piada
herética só tem graça porque a Mona Lisa
é “o quadro mais famoso do mundo”, como qualquer pesquisa DataFolha feita na
Avenida Paulista pode comprovar. É preciso haver uma estrutura já conhecida
para que a desconstrução vanguardista aconteça.
A história de Drácula é de conhecimento público, de modo
que qualquer espectador irá entendendo quem é o rapaz que chega àquela cidade
antiquada, de lá pega uma diligência, salta numa floresta brumosa, é levado
para um castelo onde mora sozinho um velho imponente que lhe serve jantar mas
não se alimenta... E de noite aparecem três moças bonitas e meio dentuças...
As peripécias do romance já foram glosadas e reglosadas
em dezenas de filmes, quadrinhos, romances menores. O que há de interessante é
que Portabella está recontando ao mesmo tempo um clássico da literatura de
terror (Drácula, de Bram Stoker), um
clássico do filme de terror (Nosferatu,
de Murnau) e um filme de terror colorido, contemporâneo, que está sendo feito ao
mesmo tempo por um amigo seu (Conde
Drácula, de Jesus Franco).
(Pere Portabella)
Os antropólogos dizem que não há duas versões de um mito
que sejam idênticas, e que nenhuma delas reúne todos os elementos do mito. É preciso
reunir e superpor o maior número possível delas, para que as repetições e
confirmações comecem a encorpar a narrativa mítica fundamental. O mesmo ocorre
na cultura de massas, quando uma história “cai no gosto” das multidões e
durante mais de um século é recontada mil vezes.
A vanguarda interfere nesse processo, não para
confrontá-lo, talvez, mas para dar-lhe uma sacudidela, ver até que ponto ele
está com os parafusos bem apertados, sentir até que ponto uma platéia pode
assistir uma hora inteira de filme sem som (ou com som estridente e randômico)
e ainda assim passar recibo de que viu a história do Conde Drácula.
Histórias clássicas dessa envergadura tendem à diluição e
à esclerose quando são recontadas pela linguagem do cinema comercial, que é sempre
datada, sempre conservadora. É o que ocorre com o filme de Jesus Franco, apesar
da sua boa disposição em ser “fiel à obra original”.
A interferência vanguardista e herege de Portabella
transforma uma história concebida para provocar um confortável terror (finalidade
do cinema comercial) numa história que não aterroriza mas incomoda. O que é
sempre bom de vez em quando.
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