quarta-feira, 18 de outubro de 2017

4279) A Mansão Onde os Deuses Vão Morrer (18.10.2017)




Para alguns críticos, um dos elementos principais da “literatura gótica” é o fato de que essas histórias se dão em torno de um Edifício. É no Edifício que está entranhada a essência do Gótico, que seria (numa simplificação extrema) uma narrativa trágica onde ocorre uma invasão do sobrenatural no mundo físico e uma invasão do Passado no Presente.

(Digressão: Quando dizemos “um Edifício”, vejam a importância dessa inicial maiúscula, é quase uma metalinguagem holográfica do Edifício propriamente dito, com o “E” sugerindo uma estrutura vertical (“um retângulo de pé”), com andares superpostos.)

O Edifício em questão, quando a história é ambientada no tempo renascentista ou medieval, é geralmente um Castelo, uma Torre, uma Fortificação, um Templo, uma Abadia. Quando situado num ambiente urbano, pode ser um Palácio, uma Mansão, uma Catedral... Romances modernos de terror gótico têm usado com sucesso um Hotel, um Manicômio, uma Prisão, uma Escola, um Hospital, um Centro de Pesquisas, uma Biblioteca.

Lápis e papel na mão, e cada um lembre os seus exemplos preferidos, porque são de perder a conta.

Essa literatura nos propõe de início a existência de um Espaço limitado, fechado, de contornos bem definidos, algo que se avista sem dificuldade e que se destaca inequivocamente da paisagem-fundo ao seu redor. Um bloco de realidade mais compacto do que a realidade que o cerca.

E ao mesmo tempo esse Espaço é um bloco que condensa em si um Passado inteiro, uma História inteira. É um lugar saturado de Passado a tal ponto que o peso desse Passado altera o fluxo do Tempo. Distorce as relações temporais comuns, assim como um objeto de grande massa física as distorce no espaço sideral.

(Digressão: Tá vendo? Só esta tesezinha aí em cima poderia resultar num belo coffee-table book de umas 200 páginas, belamente ilustrado em cores com exemplos da literatura, do cinema-TV e das artes plásticas; e copiosas citações de textos. Alguém, que não eu, certamente botará um dia essa grana no bolso.)



Malpertuis (1943), de Jean Ray (1887-1964) é um romance famoso do gênero, que catei durante algum tempo e somente agora pude ler. Não sei de nenhuma edição brasileira até hoje. A única edição à venda na Estante Virtual (por 120,00, um preço justo) é a de La Renaissance du Livre (Bélgica), que reúne o romance e mais as coletâneas Les Contes du Whisky e Autres Histoires Noires et Fantastiques (os três livros juntos dão cerca de 600 páginas).



Malpertuis é o nome de uma misteriosa mansão decadente, numa cidade soturna, onde um homem muito rico, em seu leito de morte, convoca vários parentes e conhecidos e deixa para eles uma fortuna monumental a ser igualmente dividida entre todos, com uma condição: que todos venham morar ali para sempre, sem direito a ir embora.

Passam a acontecer então episódios grotescos, sangrentos, eróticos, inexplicáveis. Criaturas monstruosas ou meramente bizarras aparecem e desaparecem. A narrativa é a superposição de vários manuscritos redigidos em épocas diferentes, e montam um quebra-cabeças que se elucida aos poucos.

O tema central do romance, que se esclarece no final, é a morte dos deuses das religiões antigas, que começam a definhar e a se extinguir depois que os seres humanos deixam de acreditar neles. Não estou dando nenhum spoiler, porque o próprio autor, nas copiosas epígrafes de antes de cada capítulo, reitera esse tema sem cessar.

Malpertuis seria um predecessor ilustre de American Gods (Neil Gaiman, 2001) que também mostra deuses antigos vivendo hoje como seres humanos banais, envelhecidos, ainda metidos a arrogantes mas já sem muitos poderes.

Há uma adaptação cinematográfica interessante, dirigida por Harry Kümel em 1971, e que pode ser vista aqui, numa versão dublada em espanhol:


O filme realça o aspecto bizarro da narrativa, que tem algo de filmes como Delicatessen (Jeunet & Caro, 1991) e de romances clássicos de fantasia como a trilogia “Gormenghast” de Mervyn Peake (1946-50-59). São espaços fechados porém gigantescos, “maiores por dentro do que por fora”, como a Mansão Edgewood imaginada por John Crowley em outro clássico da fantasia, Little, Big (1981).

Jean Ray é um autor interessante, um produtor de pulp fiction em série que assimilou muito da excêntrica imaginação fantástica belga (a que já me referi em meu artigo aqui sobre James Ensor). Diferentemente da maioria dos autores góticos, que seguem o modelo vitoriano de livros gigantescos e parágrafos intermináveis, ele escreve uma prosa rápida, quase cinematográfica, de parágrafos curtos, uma narrativa cheia de sugestões visuais mas sem excesso de detalhe.


Ele hoje é mais famoso pela gigantesca série de aventuras de “Harry Dickson, le Sherlock Holmes américain”, que ele manteve com enorme sucesso entre 1920 e 1940. Uma série que Alain Resnais tentou filmar durante muitos anos, mas ao que parece não conseguiu levar adiante o projeto.






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