Para alguns críticos, um dos elementos principais da “literatura
gótica” é o fato de que essas histórias se dão em torno de um Edifício. É no
Edifício que está entranhada a essência do Gótico, que seria (numa
simplificação extrema) uma narrativa trágica onde ocorre uma invasão do
sobrenatural no mundo físico e uma invasão do Passado no Presente.
(Digressão: Quando dizemos “um Edifício”, vejam a
importância dessa inicial maiúscula, é quase uma metalinguagem holográfica do
Edifício propriamente dito, com o “E” sugerindo uma estrutura vertical (“um
retângulo de pé”), com andares superpostos.)
O Edifício em questão, quando a história é ambientada no
tempo renascentista ou medieval, é geralmente um Castelo, uma Torre, uma Fortificação,
um Templo, uma Abadia. Quando situado num ambiente urbano, pode ser um Palácio,
uma Mansão, uma Catedral... Romances modernos de terror gótico têm usado com
sucesso um Hotel, um Manicômio, uma Prisão, uma Escola, um Hospital, um Centro
de Pesquisas, uma Biblioteca.
Lápis e papel na mão, e cada um lembre os seus exemplos preferidos,
porque são de perder a conta.
Essa literatura nos propõe de início a existência de um Espaço
limitado, fechado, de contornos bem definidos, algo que se avista sem
dificuldade e que se destaca inequivocamente da paisagem-fundo ao seu redor. Um
bloco de realidade mais compacto do que a realidade que o cerca.
E ao mesmo tempo esse Espaço é um bloco que condensa em
si um Passado inteiro, uma História inteira. É um lugar saturado de Passado a
tal ponto que o peso desse Passado altera o fluxo do Tempo. Distorce as
relações temporais comuns, assim como um objeto de grande massa física as
distorce no espaço sideral.
(Digressão: Tá vendo? Só esta tesezinha aí em cima
poderia resultar num belo coffee-table
book de umas 200 páginas, belamente ilustrado em cores com exemplos da
literatura, do cinema-TV e das artes plásticas; e copiosas citações de textos.
Alguém, que não eu, certamente botará um dia essa grana no bolso.)
Malpertuis
(1943), de Jean Ray (1887-1964) é um romance famoso do gênero, que catei
durante algum tempo e somente agora pude ler. Não sei de nenhuma edição
brasileira até hoje. A única edição à venda na Estante Virtual (por 120,00, um
preço justo) é a de La Renaissance du Livre (Bélgica), que reúne o romance e
mais as coletâneas Les Contes du Whisky
e Autres Histoires Noires et Fantastiques
(os três livros juntos dão cerca de 600 páginas).
Malpertuis é o nome de uma misteriosa mansão decadente, numa
cidade soturna, onde um homem muito rico, em seu leito de morte, convoca vários
parentes e conhecidos e deixa para eles uma fortuna monumental a ser igualmente
dividida entre todos, com uma condição: que todos venham morar ali para sempre,
sem direito a ir embora.
Passam a acontecer então episódios grotescos, sangrentos,
eróticos, inexplicáveis. Criaturas monstruosas ou meramente bizarras aparecem e
desaparecem. A narrativa é a superposição de vários manuscritos redigidos em
épocas diferentes, e montam um quebra-cabeças que se elucida aos poucos.
O tema central do romance, que se esclarece no final, é a
morte dos deuses das religiões antigas, que começam a definhar e a se extinguir
depois que os seres humanos deixam de acreditar neles. Não estou dando nenhum
spoiler, porque o próprio autor, nas copiosas epígrafes de antes de cada
capítulo, reitera esse tema sem cessar.
Malpertuis
seria um predecessor ilustre de American
Gods (Neil Gaiman, 2001) que também mostra deuses antigos vivendo hoje como
seres humanos banais, envelhecidos, ainda metidos a arrogantes mas já sem
muitos poderes.
Há uma adaptação cinematográfica interessante, dirigida
por Harry Kümel em 1971, e que pode ser vista aqui, numa versão dublada em
espanhol:
O filme realça o aspecto bizarro da narrativa, que tem
algo de filmes como Delicatessen
(Jeunet & Caro, 1991) e de romances clássicos de fantasia como a trilogia “Gormenghast” de Mervyn Peake
(1946-50-59). São espaços fechados porém gigantescos, “maiores por dentro do
que por fora”, como a Mansão Edgewood imaginada por John Crowley em outro
clássico da fantasia, Little, Big
(1981).
Jean Ray é um autor interessante, um produtor de pulp fiction em série que assimilou
muito da excêntrica imaginação fantástica belga (a que já me referi em meu
artigo aqui sobre James Ensor). Diferentemente da maioria dos autores góticos,
que seguem o modelo vitoriano de livros gigantescos e parágrafos intermináveis,
ele escreve uma prosa rápida, quase cinematográfica, de parágrafos curtos, uma narrativa
cheia de sugestões visuais mas sem excesso de detalhe.
Ele hoje é mais famoso pela gigantesca série de aventuras
de “Harry Dickson, le Sherlock Holmes américain”, que ele manteve com enorme
sucesso entre 1920 e 1940. Uma série que Alain Resnais tentou filmar durante
muitos anos, mas ao que parece não conseguiu levar adiante o projeto.
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