domingo, 7 de março de 2010

1759) Machado: "O Enfermeiro" (29.10.2008)



É uma das poucas histórias de crime na obra de Machado, onde as mortes são todas por doença e uma ou outra por acidente, como o afogamento de Escobar em Dom Casmurro (se bem que nesta já julguei ver pistas de um suicídio-por-amor-impossível). A história do enfermeiro Procópio (em Várias Histórias, 1896) é classificada por ele mesmo como “um documento humano”. É uma dessas confissões que só se fazem muito tempo depois, quando a poeira das emoções já assentou, e os fatos valem como uma paisagem imóvel à espera de olhos que a saibam ver.

Procópio tem 42 anos, estuda Teologia, e um dia aceita um emprego no interior, para servir de enfermeiro a um coronel rico e irascível. Muitos já haviam assumido o cargo para depois abandoná-lo às pressas, porque o coronel os insulta e chega a espancá-los. Procópio tem com o novo patrão uma lua-de-mel de uma semana; depois, quando as agressões começam, tem paciência bastante para evitar confrontos maiores. Isto não o impede de numerosas vezes querer pedir as contas, mas todos o demovem da idéia, afirmando que nunca um enfermeiro se deu tão bem com o velho, que aliás não tem muito tempo de vida.

Uma noite, Procópio cochila e perde a hora de ministrar o remédio. O coronel, furibundo, atira-lhe uma moringa à cara. Ferido, ele se enraivece, atraca-se com o patrão, agarra-lhe o pescoço, e quando dá por si o coronel está morto. Ele passa uma noite de inferno e remorsos, mas na manhã seguinte compõe o cadáver, manda chamar o médico, e em breve o coronel está sepultado em paz, sem que ninguém desconfie. A surpresa maior de Procópio é descobrir que o falecido o fez seu único herdeiro.

E aqui retorna a velha figura dramatúrgica de Machado, as Esperanças Decrescentes. Comido pelo remorso, Procópio arma um plano: “receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas”. Retorna à cidadezinha para firmar os papéis, e vê-se cercado de gente que lhe elogia a paciência e a humildade em suportar os agravos de um velho tão detestável. Procópio defende o morto, enaltece suas virtudes; mas todos discordam: “Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa”.

Essa desconstrução sistemática do caráter da vítima vai mudando as intenções de Procópio: “um prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, recompunha-se logo e ia ficando”. Esta arrepiante metáfora (um sentimento que é como uma solitária, um verme que não se expurga) anuncia sua transformação, ao receber a herança: “a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação”. Nenhum personagem machadiano resiste a um dinheiro achado na rua. Talvez não chegue ao assassinato para obtê-lo; mas se o recebe de herança, encara-o como uma indenização pelo desgaste emotivo de haver assassinado.

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