quinta-feira, 4 de junho de 2009

1075) Duplas de cantadores (26.8.2006)


(José Gonçalves e Ivanildo Vila Nova, em foto de Roberto Coura)

Um dos aspectos que sempre distinguiram os cantadores de viola nordestinos dos cantores de música sertaneja foi o modo como esses artistas se organizam em duplas. Na música sertaneja de São Paulo, Minas, Goiás, as duplas são praticamente fixas. Tonico só canta com Tinoco, Chitãozinho só canta com Xororó, e assim por diante. Na cantoria de viola nordestina, os cantadores são soltos. Embora nada os impeça de ficar semanas ou meses cantando com o mesmo parceiro, parte-se do princípio de que o cantador, mesmo trabalhando sempre em dupla (cantador não canta sozinho) é um profissional independente. Como já me disse um cantador, “Os sertanejos são casados. A gente não, sai com quem quiser”.

Certas duplas se consagraram pelas grandes cantorias que fizeram juntas: Lourival Batista e Pinto do Monteiro é um exemplo que todo mundo se lembra. Mas Lourival cantava com todo mundo, não apenas com Pinto; e vice-versa. Eu vi Lourival cantar dezenas de vezes, e nunca com Pinto. Muitas vezes alguém quer chamar uma dupla de cantadores para se apresentar em sua casa, aí liga para o cantador Fulano: “Fulano, quero que você venha cantar aqui em casa. Você está cantando com quem atualmente?” “Com Beltrano”, “Ótimo, então venham os dois”. Se não interessar, o cara propõe: “Eu gostaria que você viesse cantar aqui, mas não com Beltrano, e sim com Sicrano. Pode ser?” Aí depende – se os dois ainda se dão bem, as agendas combinam, etc. Mas a dupla não é fixa.

Ouço falar que agora as duplas tendem a se manter estáveis. A só canta com B, C só canta com D. Dizem os cantadores (e eu concordo) que isso proporciona um entrosamento maior, que trabalhando sempre juntos os dois poetas desenvolvem um arquivo mais variado de assuntos (e de decorebas, que ninguém é de ferro). Ou seja: é a “cantoria de resultados”, seguindo o princípio capitalista do máximo de produtividade, o máximo de rendimento. Cantar com um desconhecido, ou com alguém com quem o poeta não desenvolveu essa afinidade, começa a parecer um risco, não importa que os cantadores tenham feito isto durante 150 anos.

Este aspecto sempre me pareceu intimamente ligado a outro que distingue os dois grupos: os cantores sertanejos cantam canções decoradas, os repentistas nordestinos improvisam. E isto, sim, é a distinção crucial entre os dois. Eu nada tenho contra um sujeito escrever versos, decorá-los e passar a vida a repeti-los. Tenho feito isto, aliás, nos últimos trinta anos. Mas a Arte da Cantoria é outra coisa, meus camaradas. A Arte da Cantoria consiste em ser capaz de improvisar. Levar verso decorado, lembrar verso antigo, encaixar de vez em quando um mesmo verso num lugar onde ele cabe... tudo isso faz parte do ofício, mas não é nisso que consiste a Grande Arte. E quando a dupla se torna fixa, o risco de cantar somente verso decorado cresce na mesma proporção. A dupla fixa pode ser (tomara que não seja, vou batalhar para que não seja) o começo do fim do Improviso.

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