quinta-feira, 5 de março de 2009

0865) Meus relógios digitais (24.12.2005)



A ciência nos ensina que a passagem do Tempo é aferida quando podemos distinguir entre um estado A e um estado B ligeiramente diferente do outro. Se A e B são idênticos, podem ser chamados de A, são a mesma coisa, e o tempo não passou. Um relógio parado, por exemplo, é um relógio que encalhou no estado A. Nada ali se modifica, e se dependêssemos apenas dele poderíamos pensar que o Tempo se deteve. Felizmente ele está rodeado de objetos que estão passando normalmente para B, C, D e assim por diante, e esses objetos nos valem como “relógios”, indicam a sucessão de estados que caracteriza o Tempo.

Um leitor desta coluna me perguntou, certa vez, qual a utilidade de algumas crônicas nostálgicas que aparecem aqui, nas quais me refiro com saudade a aspectos de Campina Grande (ou do mundo em geral) que não mais existem, cantores desaparecidos, escritores do tempo em que Adão era cadete. Expliquei que não é propriamente nostalgia, embora haja saudade. Saudade é quando você sente falta de uma coisa que não existe mais; nostalgia é quando você acha que o tempo passado era melhor que o tempo presente. Eu não acho. Se tenho saudade de algum dia da minha juventude, esse dia foi bom porque naquele tempo eu pensava exatamente assim: “Não troco o dia de hoje por nenhum outro da minha vida”. E sei que quando tiver 70 anos lembrarei com saudade deste dia de hoje, em que redijo estas linhas: um final de manhã ensolarado, em São Paulo, em que escrevo enquanto me preparo para ir dar uma entrevista a uma rádio online e depois rodar pelos sebos do Centro velho. Mas não trocaria, não daria um só instante do meu presente em troca de um do passado. Não há câmbio que compense. Passado é meia pataca, Presente é libra de ouro.

O que ocorre, caros colegas, é que o passado me serve de relógio; Campina Grande é meu relógio digital. Olho para o relógio aqui do lado: são 11:58. Sei que daqui a pouco olharei de novo e verei 11:59. A troca deste singelo algarismo me confirma a passagem do tempo, confirmação importantíssima para uma mente como a minha, mergulhada num Eterno Presente como o dos contos de Osman Lins, onde todas as coisas coexistem, sem fluxo, sem transcurso, sem esse incessante passar.

Quando passo nas ruas de Campina, vejo o Tempo a trocar seus numerais. Cada residência que vira boutique, cada armazém de ferragens que vira prédio de apartamentos, cada loja de sapatos que vira agência de banco, cada livraria sagrada que vira loja de roupas profanas, cada cinema que vira uma ruína largada a si mesma para servir de pretexto a uma demolição na calada da noite – cada um destes signos é um algarismo de relógio digital cuja substituição me lembra que o Tempo é como o Vento: algo em movimento, algo que passa, mas só existe pelo fato de estar passando. Não é nostalgia, amigos. É a aceitação desta brisa que refresca o Presente, e minha despedida a tantas coisas que se vão, blowin’ in the wind.

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