quinta-feira, 5 de março de 2009

0863) Sherlockiana (22.12.2005)



A palavra “Sherlockiana” designa o universo dos textos que têm como centro as histórias de Sherlock Holmes escritas por Sir Arthur Conan Doyle. O detetive londrino é certamente um dos personagens literários mais conhecidos no mundo inteiro. Paulo Francis conta um ótimo episódio sobre um inglês que se perdeu no Saara e foi parar numa obscura tribo de tuaregues que não falavam nenhum dos dialetos árabes em que ele tentou comunicar-se. Com muito esforço, ele conseguiu explicar que era inglês. Os olhos de um dos tuaregues brilharam imediatamente: “English!...” disse ele. “Sherlock Holmes!” E Francis conclui: “Ser famoso é isto, e o resto é bobagem”.

Hoje, os quatro romances e os 56 contos que compõem o “Cânone Sherlockiano” (ou “As Escrituras Sagradas”, como alguns os chamam) são uma gota no oceano, talvez menos de um por cento de todas as aventuras de Holmes e do Dr. Watson. Viraram folclore; caíram no domínio público. A quantidade de aventuras póstumas do detetive é incalculável – até Jô Soares arriscou o seu Xangô de Baker Street. Mais interessantes dos que as aventuras, contudo, são os livros de estudos históricos que tratam Holmes e Watson como personagens reais e Doyle como um mero biógrafo dos dois. É um passatempo antigo de cavalheiros ingleses cultos e desocupados, que ao longo do Século 20 veio a constituir uma pequena indústria cultural à parte. W. S. Baring-Gould é o mais famoso desses eruditos, e Leslie Klinger não lhe fica atrás.

São de Klinger as copiosas anotações que enriquecem a nova edição das obras de Holmes, que estão a sair pela Jorge Zahar Editor em enormes e acariciáveis volumes; o primeiro, As aventuras de Sherlock Holmes, tem 495 páginas. Serão cinco ao todo, com novas traduções, e, principalmente, as notas de Klinger. Estas não apenas nos dão um background de informações úteis (o preço das coisas, o significado de expressões de época, descrição dos lugares e personagens londrinos mencionados no texto, modelos de armas, etc.) como estabelecem um divertido diálogo com os contos. As deduções ou afirmativas de Holmes são alternadamente louvadas ou criticadas; os numerosos “pontos cegos” das histórias são indicados, mostrando que Conan Doyle, mesmo sendo um autor escrupuloso e atento, não mantinha anotações detalhadas sobre o universo que estava criando, e contradizia-se com freqüência.

O leitor que só conhece meia-dúzia de contos sherlockianos pode encará-los todos agora, seguindo sua ordem original de publicação, guiado por notas esclarecedoras, e tendo à vista as ilustrações originais de Sidney Paget para a Strand Magazine. Só não aconselho que tal livro seja colocado nas mãos de um garoto de dez anos, porque lá pelo ano 2050 ele certamente estará escrevendo algo parecido com este artigo em algo parecido com este jornal, na vã tentativa de proporcionar a alguém um pouco do êxtase que é descobrir, dentro do mundo real, um outro mundo maior e mais real do que este.

2 comentários:

seguidorlovecraft disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
seguidorlovecraft disse...

Ótima postagem. Também sou fã do universo “Sherlockiano”, e já andei escrevendo algumas coisas nesse meio. Vai que um dia dê vontade de escrever alguma coisa envolvendo Sherlock Holmes?!

"...estudos históricos que tratam Holmes e Watson como personagens reais e Doyle como um mero biógrafo dos dois". Meu caro, é mais ou menos como disse Marcel Schwob, em seu livro "Vidas Imaginárias": a arte do biógrafo "descreve o individual, só deseja o único", conta "...com a mesma preocupação as existências únicas dos homens, quer tenham sido divinos, medíocres, ou criminosos".
Eu não duvido que Sir Conan Doyle tenha pensado, também, nisso. Na arte do biógrafo, ao criar tal (ou tais, pois também narra Dr. Watson) personagem.

Abraços
Leonardo Nunes Nunes
(escritor semiprofissional)
http://seguidorlovecraft.blogspot.com/