segunda-feira, 11 de agosto de 2008

0505) O Amor e a Fé (31.10.2004)


(Bermini - estátua de Ludovica Albertoni)

Um dos textos cruciais da nossa literatura é o Cântico dos Cânticos de Salomão. Digo “cruciais” ao pé da letra, no sentido de cruzamento, encruzilhada, ponto onde dois caminhos divergentes se tocam por um segundo. Esses caminhos são a comunhão afetiva com outro ser humano e a comunhão mística com Deus – ou seja, o Amor e a Fé. Desde a infância eu relia fascinado (sob o casto pretexto de “estar lendo a Bíblia”) aqueles versos onde o poeta sai descrevendo sua Amada, fala dos cabelos, dos olhos, do pescoço, dos peitos... Ai de mim, depois dos peitos o texto dava uma guinada de 90 graus, mudava de assunto. Mas versos assim ainda ecoam como uma sextilha de cantador inspirado: “Eu disse: subirei à palmeira, e colherei os seus frutos; e os teus peitos serão como dois cachos de uvas; e o cheiro de tua boca como o dos pomos...”

Estes versos me vêm à mente quando leio agora, numa antologia de poesia espanhola do Século de Ouro, estes belos tercetos finais de um sonetista anônimo, onde o “Tu” a quem se dirige é o próprio Deus: “Muéveme, al fin, tu amor, y en tal manera, / que aunque no hubiera cielo, yo te amara, / y aunque no hubiera infierno, te temiera. // No me tienes que dar por que te quiera; / pues aunque lo que espero no esperara, / lo mismo que te quiero te quisiera.”

Os grandes poetas místicos são justamente estes, que usam para se dirigir a Deus a mesma retórica de intensa paixão dos grandes poetas eróticos. E por que isto? Porque, por mais afastadas que pareçam, não existem duas condições psicológicas mais assemelhadas do que o amor por uma mulher e a fé em Deus. São os dois exemplos mais cabais do caso em que Desejo é convertido em Certeza por um simples gesto da Vontade. Esta certeza muitas vezes dá com os burros nágua: a paixão não é correspondida, como a de Dante por Beatriz. Mas ainda assim o poeta dá um jeito de escrever um catatau de milhares de versos provando que Deus permitiu sua entrada no Paraíso e que lá estava Beatriz à sua espera.

Certeza é certeza, e não existe certeza maior do que a de um apaixonado, seja ele o poeta Neruda cantando os atributos físicos de sua musa, seja San Juan de la Cruz desmanchando-se em estrofes de ardor pelo seu Amado. Nada garante a um apaixonado que seu amor é correspondido ou mesmo que tem razão de ser, e nada garante ao místico que Deus existe de fato. Isto, no entanto, não abala essa Certeza Absoluta, que não tem outro aval que o de si própria. Nossos poetas religiosos modernos (penso em Jorge de Lima, em Murilo Mendes) já não se dirigem a Deus em termos diretamente eróticos. A modernidade trouxe consigo essa cisão entre corpo e alma. Mas os poetas místicos católicos ficarão para sempre como o melhor exemplo de uma poesia movida a Fé, e de uma Fé movida pelos mesmos motores hormonais que movem o Amor: a Certeza do próprio desejo físico, o mais intenso (e aqui pra nós, o menos dispendioso) dos estimulantes químicos.

0504) O goleiro (30.10.2004)



Não sou a pessoa mais indicada para comentar evolução de esquemas táticos no futebol. Eu nunca sei quando um time está jogando com 3-5-2 ou com 4-3-3. Para mim é sempre um amontoado de crioulos carecas correndo e se esbarrando. Mas se tem uma coisa em que o futebol evoluiu nitidamente nestes 40 anos em que o acompanho foi no papel desempenhado pelo goleiro. O goleiro é hoje um jogador muito mais participante do que era décadas atrás.

Antigamente os goleiros eram meio ingênuos. O paradigma da época era de que o goleiro deveria segurar com as mãos todas as bolas chutadas contra o seu gol. Um goleiro que largava a bola (“queimava”, “arrotava”) era visto com desdém. Os goleiros de hoje, não. Eles só tentam agarrar “na boa”. Qualquer bola duvidosa é espalmada para cima ou para os lados, e o desdém de hoje se limita aos goleiros que espalmam a bola de volta para o interior da área, à disposição dos atacantes. Um outro aspecto, conseqüência deste, é que a primeira preocupação do goleiro é simplesmente a de cortar a trajetória do chute. Com as mãos, com os antebraços, com o corpo, e principalmente com os pés. Nos anos 1960, um goleiro defendia com os pés no máximo uma vez por partida; hoje em dia, é o tempo inteiro. Na verdade, muitos goleiros, principalmente goleiros volumosos como Dida e Júlio César, jogam-se diante do atacante, confiando que a bola vai bater em qualquer parte do corpo deles e ser desviada. Em geral, é o que acontece.

Uma outra evolução foi possibilitada pelas mudanças na regra. Antigamente, o goleiro podia ficar com a bola o tempo que quisesse. A torcida adversária arrancava os cabelos de ódio quando o goleiro do time que estava em vantagem ficava batendo bola pra lá e pra cá dentro da área, pra lá e pra cá, batendo a bola no chão e pegando de volta, perseguido pelos atacantes, negaceando, fingindo que ia, voltando, batendo a bola... O goleiro era proibido de dar tantos passos (não lembro quantos) com a bola nas mãos, sem batê-la; mas desde que batesse com a bola no chão (muitos goleiros levavam isso ao pé da letra, abaixando-se e tocando no chão com a bola, sem soltá-la), podia ficar com ela a tarde inteira.

A regra mudou: o goleiro tem seis segundos para livrar-se da bola, quando a tem nas mãos. E foi proibida outra aberração, que era a “bola atrasada”. Hoje em dia, só se pode atrasar a bola para o goleiro com a cabeça, o peito, etc.; bola atrasada com o pé tem que se recebida por ele com o pé. É um detalhe sutil, mas que fez um bem imenso ao esporte. Vocês não fazem idéia do que era a praga da bola atrasada, antigamente. Os jornalistas reclamam do “anti-jogo” de hoje, com razão, mas pelo menos neste aspecto houve uma evolução. O goleiro hoje é um jogador a mais. Adianta-se, sai da área, troca passes como se fosse um líbero, chega até a ir tentar um gol de cabeça na área adversária, quando o time está perdendo. Raramente consegue. Mas tá aí uma coisa que melhorou no futebol.

0503) O poema incompreensível (29.10.2004)


(Dylan Thomas)

Volta e meia, folheando um livro ou uma revista literária, eu me deparo com esse evento traumático para um sujeito que se auto-intitula poeta ou crítico literário: o poema incompreensível. Quando isso acontece, ressurgem da tumba todos os meus terrores de cineclubista adolescente, quando me encaminhava para ver um dos chamados “filmes herméticos”, como Oito e Meio de Fellini ou Cidadão Kane de Welles. Hoje estes filmes são convencionais, mas, 40 anos atrás, e para garotos que mal tinham sido apresentados aos livros de cinestética do Padre Guido Logger, eram motivo para pesadelos antecipados.

Hoje em dia quem me deixa assim é o poema. Abro um livro ao acaso e começo a ler. “Obstáculos. Crisântemos do porém. / Na aba inimiga, mefisto ulula. A prévia / de um sol quase quando. // Avisas. Olhas. Cai do falível a vastidão que expulsa. / Lâminas sem placa, e o polegar de Van Gogh.” Não, amigo, não estou sendo injusto com nenhum poeta. Isso aí é uma paródia, porque não quero me expor a vinganças por mangar em público dos poemas de Seu Ninguém. Quando me deparo com textos assim, corto o mal pela raiz: largo o livro e vou tocar violão. A esta altura do campeonato, não me sinto mais na obrigação de ler algo que não faz sentido para mim – embora admita a possibilidade de que faça sentido para outras pessoas. Cada escritor tem seu público. Ninguém escreve para todo mundo. E cada sujeito que escreve toma uma decisão, ao botar aquelas frases no papel, sobre que tipo de audiência está tentando atingir.

Sou contra o poema difícil? De jeito nenhum. Vejam por exemplo o caso de Dylan Thomas. Não conheço poeta mais obscuro do que esse rapaz. Abrir caminho ao longo de um poema de Dylan Thomas é como cavar sem lanterna numa mina de carvão. O que nos salva (e nos garante a emoção poética) é que a cada duas ou três linhas brota uma imagem tão poderosa, uma frase de sonoridade tão encantatória, que parece por alguns minutos iluminar, esclarecer e dar sentido, não só a tudo que foi dito antes mas a tudo que virá a ser dito um dia por quem quer que seja. Esses relâmpagos poéticos, de que a poesia de Thomas está cheia, nos dão confiança de que existe um caminho lá dentro, existe “produção de sentido” no concatenar daquelas frases, e de que devemos ter paciência com a treva, porque de tantos em tantos passos esses vislumbres de luz irão se repetindo.

Reconheço que o nome, a griffe “Dylan Thomas” pesa, infunde credibilidade, nos sussurra ao ouvido que alguma recompensa futura está à nossa espera. Mas ocorre também com poetas anônimos, desde que o verso em si traga relâmpago, não importa a assinatura. Inúmeros poemas de Drummond, principalmente do Drummond tardio, são poemas meramente desculpáveis; e já guardei por anos uma revista ou jornal porque tinha um poema brilhante de um cara que até hoje não sei quem é. O poema incompreensível é uma piada que não me fez rir. Passo adiante, e espero a próxima.

0502) Artista grande, arte pequena (28.10.2004)




Quando um artista que trabalha numa forma de arte tida como mais elevada usa uma forma considerada mais popular, a primeira coisa que ele faz é diminuir seu próprio nível de exigência. E é aí que dá com os burros nágua. 

É o caso de compositores de MPB que recebem a encomenda de produzir um forró ou um sambão; de diretores de cinema-de-arte ou de teatro quando vão fazer seu primeiro trabalho na TV; de poetas eruditos a quem se encomenda uma letra de música. 

Eles acham que estão descendo um degrau. E se apequenam, seja porque se desprezam por fazerem aquela concessão (muitas vezes motivada por dinheiro), seja porque acham que até então vinham trabalhando para um público sofisticado e agora estarão se dirigindo para um público meio burrinho, que engole qualquer coisa. Aí, ficam burrinhos também.

Raymond Chandler foi um grande escritor que só escreveu romances policiais. Tivesse escrito histórias sem assassinatos, e com um protagonista que em vez de detetive particular fosse professor universitário ou executivo, teria sido muito mais respeitado. Foi ele quem disse, numa carta de 1949 para seu editor Hamish Hamilton:

"Acho que as pessoas realmente competentes obterão um sucesso razoável em quaisquer circunstâncias. Shakespeare se sairia bem em qualquer época, porque se recusaria a ficar segregado num recanto. Ele se apoderaria dos falsos deuses e os recriaria a seu modo, ele adotaria as fórmulas em voga e faria com elas coisas que indivíduos menores julgariam ser impossíveis. Se fosse vivo hoje, ele sem dúvida iria escrever e dirigir filmes, peças, sabe Deus o que mais. Em vez de dizer ´Este meio de expressão não presta´, ele se apossaria do meio de expressão e faria com que prestasse.”

É uma passagem claramente autobiográfica, porque não há melhor descrição do que esta para o que Chandler fez com o romance policial. Pena que a própria inovação dele tenha sido tão imitada, parafraseada, plagiada, parodiada (o “Ed Mort” de Veríssimo, por exemplo) que também seja hoje, meio século depois, um clichê quase inviável. Paciência. 

Ainda assim, grandes artistas podem pegar as formas narrativas mais desvalorizadas, mais vulgarizadas, e fazer bons livros, bons filmes no interior delas.

Basta pensar no que Ang Lee fez com os filmes de artes marciais em O Tigre e o Dragão, no que Sergio Leone fez com o faroeste italiano (que ajudou a criar) em Era uma Vez no Oeste, no que Rubem Fonseca fez com o romance policial americano em A Grande Arte, ou no que Chico Buarque faz com a canção de amor. 

Não existem fórmulas mais desgastadas do que estas, mas sempre aparece alguém com talento bastante, e dedicação bastante, para enxergar as possibilidades do modelo e fazer o modelo render o máximo. 

E pra falar a verdade, um grande artista deveria transbordar quando derrama seu talento num receptáculo pequeno. O que não pode é o cara achar que é maior do que o veículo que está usando, e desaparecer dentro dele.







0501) O verbo “tradar” (27.10.2004)


(Michel de Notredame)

O verbo “tradar”, inventado por mim, tem conexões mórficas, semânticas e etimológicas com outros verbos de sentido aparentado, como “trazer” e “trasladar”, com os quais partilha a idéia de algo que está sendo transportado de um local para outro. Só que no caso do verbo tradar não se trata de um transporte ao longo do espaço, e sim do Tempo. Tradar significa ter acesso a visões do futuro, mesmo que se trate de um acesso breve, um mero vislumbre de algo incompreensível ou inexplicável.

É um verbo transitivo, que pede sempre um complemento substantivo. Dizemos, portanto, que “ultimamente Fulano está tradando muitas visões”. Tradar é o que os profetas e adivinhos fazem desde que o mundo é mundo. Não me refiro à captação de banalidades do cotidiano, como saber quem vai ganhar as eleições ou se o bicho de amanhã vai ser macaco ou borboleta, mas à captação de macrovisões de conteúdo significativo para um indivíduo ou para a Humanidade.

Um dos grandes tradadores de todos os tempos foi, por exemplo, o apóstolo São João, que num belo dia sentiu-se arremessado à Ilha de Patmos e produziu um dos textos alucinatórios mais impressionantes de todos os tempos: o Livro das Revelações, ou Apocalipse. O profeta bíblico Ezequiel é outro, e suas visões de rodas girando dentro de rodas, das quais brotavam faces de animais e asas de anjos, é um dos mais belos textos surrealistas da literatura – permitam-me esquecer por um instante a dimensão místico-religiosa de tais textos, e vê-los momentaneamente como literatura em si, pura evocação de imagens simbólicas.

O que dizer então dos poemas místico-visionários de William Blake, de Jorge de Lima, de Arthur Rimbaud? Em certos momentos chegamos a vacilar diante da intensidade visual e da ressonância arquetípica das imagens destes poetas, e hesitamos entre a atitude pragmática (tudo é mera imaginação criadora dos autores) e a atitude iniciática: a que tipo de comunicação supra-mental estavam eles tendo acesso?

Não se pense que podem-se tradar apenas imagens de cunho místico. Há uma espécie de cosmovisão sócio-planetária que prescinde da dimensão religiosa. Temos nesse caso as vastas imagens panorâmicas do futuro que geraram a poesia de Walt Whitman, do “Álvaro de Campos” de Fernando Pessoa, e do panteísmo-materialista do nosso Augusto dos Anjos. Todos nós, que através da prática da escrita desenvolvemos essa “Visão Interior”, somos capazes de captar instantâneos fugazes do Futuro em nossas telas mentais. Os mais afortunados (ou os mais competentes) conseguem transformar essas visões em poemas, em contos, em documentos literários como o assombroso Eureka de Edgar Allan Poe, onde o delirante autor descreve sua teoria sobre a formação e a dinâmica interna do Universo, usando até mesmo fatos astronômicos que em sua época não haviam sido descobertos. Todos podemos ser profetas. Eu trado, tu tradas, ele trada; nós tradamos, vós tradais, eles tradam.