Quando um artista que trabalha numa forma de arte tida como mais elevada usa uma forma considerada mais popular, a primeira coisa que ele faz é diminuir seu próprio nível de exigência. E é aí que dá com os burros nágua.
É o caso de compositores de MPB que recebem a encomenda de produzir um forró ou um sambão; de diretores de cinema-de-arte ou de teatro quando vão fazer seu primeiro trabalho na TV; de poetas eruditos a quem se encomenda uma letra de música.
Eles acham que estão descendo um degrau. E se apequenam, seja porque se desprezam por fazerem aquela concessão (muitas vezes motivada por dinheiro), seja porque acham que até então vinham trabalhando para um público sofisticado e agora estarão se dirigindo para um público meio burrinho, que engole qualquer coisa. Aí, ficam burrinhos também.
Raymond Chandler foi um grande escritor que só escreveu romances policiais. Tivesse escrito histórias sem assassinatos, e com um protagonista que em vez de detetive particular fosse professor universitário ou executivo, teria sido muito mais respeitado. Foi ele quem disse, numa carta de 1949 para seu editor Hamish Hamilton:
"Acho que as pessoas realmente competentes obterão um sucesso razoável em quaisquer circunstâncias. Shakespeare se sairia bem em qualquer época, porque se recusaria a ficar segregado num recanto. Ele se apoderaria dos falsos deuses e os recriaria a seu modo, ele adotaria as fórmulas em voga e faria com elas coisas que indivíduos menores julgariam ser impossíveis. Se fosse vivo hoje, ele sem dúvida iria escrever e dirigir filmes, peças, sabe Deus o que mais. Em vez de dizer ´Este meio de expressão não presta´, ele se apossaria do meio de expressão e faria com que prestasse.”
É uma passagem claramente autobiográfica, porque não há melhor descrição do que esta para o que Chandler fez com o romance policial. Pena que a própria inovação dele tenha sido tão imitada, parafraseada, plagiada, parodiada (o “Ed Mort” de Veríssimo, por exemplo) que também seja hoje, meio século depois, um clichê quase inviável. Paciência.
Ainda assim, grandes artistas podem pegar as formas narrativas mais desvalorizadas, mais vulgarizadas, e fazer bons livros, bons filmes no interior delas.
Basta pensar no que Ang Lee fez com os filmes de artes marciais em O Tigre e o Dragão, no que Sergio Leone fez com o faroeste italiano (que ajudou a criar) em Era uma Vez no Oeste, no que Rubem Fonseca fez com o romance policial americano em A Grande Arte, ou no que Chico Buarque faz com a canção de amor.
Não existem fórmulas mais desgastadas do que estas, mas sempre aparece alguém com talento bastante, e dedicação bastante, para enxergar as possibilidades do modelo e fazer o modelo render o máximo.
E pra falar a verdade, um grande artista deveria transbordar quando derrama seu talento num receptáculo pequeno. O que não pode é o cara achar que é maior do que o veículo que está usando, e desaparecer dentro dele.
4 comentários:
Bráulio, muito bom seu texto, e agora fiquei com vontade de usar em sala de aula. Sei que é besteira pedir isso, mas posso usar seu texto para dar aulas e para a avalliação dos garotos?
Texto fantástico, ou fantasmático! É tudo que nosso grupo tenta combater na arte.
Literatura tem dessas coisas: é o que um hipócrita diz que setencia o restante.
Obrigado, galera. A intenção é esta... Quanto a usar com os alunos, autorizo e agradeço! E dê o endereço do blog... :-)
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