Fui inoculado muito cedo com o vírus do perfeccionismo (herdado
do meu pai). Tanto que da adolescência em diante iniciei uma auto-cura libertária.
Quem me ajudou muito foi outro colega de doença,
Guimarães Rosa, rasurador emérito, corrigidor incansável.
O Narrador do conto “São Marcos” (Sagarana, 1956) é uma espécie de grafiteiro avant la lettre, à frente do seu tempo. Quando faz suas caminhadas
no mato, ele rabisca coisas nos bambus que vicejam à beira de um rio. Descobre
que outra pessoa (que ele batiza de “Quem-Será”) faz o mesmo.
("São Marcos", ilustração de Poty)
Os dois começam uma espécie de desafio. Cada vez que um
avista um rabisco do outro, escreve uma “resposta” embaixo. É um dos episódios
mais divertidos do conto, que tem vários. O problema é que o Narrador começa a
se espinhar de dúvidas, de hesitações, acha que está perdendo terreno para o
outro. E rabisca, num impulso de impaciência:
Ou a perfeição, ou a pândega!
Esta fórmula brincalhona me tirou um Himalaia das costas.
Dali em diante, toda vez que a Perfeição se revelava inatingível eu resvalava
para a farsa, o gracejo, a bagunça, a desafinação no coro, o atrapalho no
trabalho. Dane-se a Perfeição.
Não estou defendendo o desleixo preguiçoso, o descuido
negligente, o malfeitismo, o labacé dos incompetentes. Quero dizer apenas que a
Perfeição não existe, é uma ilusão conceitual, assim como o horizonte é uma
ilusão de ótica. Os dois são úteis para medir e avaliar o ponto em que estamos,
ou em que rumo estamos indo. Mas como objetivo, ao pé da letra, a Perfeição e
o Horizonte não precisam ser levados muito a sério.
Sempre que me envolvi com algum trabalho relativo a
música ou teatro, procurei defender a idéia de que a Expressão é mais
importante do que a Perfeição. Atores e músicos que buscam essa miragem da
perfeição vão ficando cada vez mais inexpressivos quanto mais pensam estar se
aproximando dela.
-- Quer dizer então que não existe obra de arte perfeita?
-- Se existir, é uma estátua de mármore, grega, de mil
anos atrás. Uma banda brasileira tocando em cima de um palco, diante de gente
de verdade, não precisa disso, precisa de Expressão.
Por que? Talvez porque na nossa cabeça “perfeição” é
ausência de erros. As pessoas ficam se preocupando em não errar, e quando
você se preocupa acima-de-tudo em não errar, acaba se robotizando, se
apequenando, se tolhendo cada vez mais. E eu digo: Erre à vontade, mas acerte
mais ainda.
A Arte – principalmente a que se pratica num palco,
diante de gente – não pode temer os pequenos erros, senão não consegue nunca os
grandes acertos.
Não pode ser feita com uma mentalidade de futebol, onde
1x0 é uma vitória satisfatória, desde que o “zero erro” esteja garantido.
Tem que ser como um jogo de basquete, placar de 120 x 85,
e pronto. Ninguém no basquetebol pensa em ganhar “de zero”. Pensa apenas em
tentar acertar, tentar, tentar, o tempo todo.
(Stanley Kubrick)
A indústria cultural e o mundo das artes cultivam o mito
do artista obsessivo, perfeccionista, exigente. Alguém que cobra de cada pessoa
o máximo-do-máximo, o que quer atingir patamares impensáveis de qualidade,
brilhantismo, impecabilidade técnica, perfeição.
O Cinema é um universo onde o perfeccionismo é supervalorizado.
O cinema industrial, fortemente competitivo, precisa jogar seus produtos no
mercado sob uma chuva de hipérboles. “O melhor filme”, “feito com o maior
elenco”, “dirigido pelo cineasta mais exigente do mundo”.
Li recentemente sobre um diretor contemporâneo que
examinou e recusou 70 modelos de sapatos a serem usados por um ator
coadjuvante, e só se deu por satisfeito com o 71º. par. O que significa isto?
Ânsia de perfeição? Para mim, é neurose e incapacidade de decidir. Mas a
crítica vê isso como a qualidade de um artista “com um nível de exigência
superior ao dos simples mortais”.
(Clint Eastwood)
Clint Eastwood, com mais de 90 anos, dirige uma média de
um filme por ano. Dá instruções, a equipe monta o set, ele faz alguns poucos takes de cada cena. Na montagem, examina os takes e explica ao montador o
que pretende; depois, vai jogar golfe. No fim da tarde, volta lá e o montador
mostra o que fez. Ele faz pequenas correções, e pronto.
Há diretores que passam um dia inteiro para cortar um
fotograma, e depois outro dia inteiro para colocá-lo de volta. Isto é a busca
da Perfeição? Para mim, é sinal de excesso de escrúpulos, como o daquelas
pessoas que lavam as mãos 200 vezes por dia com medo de micróbios.
Gosto dos Imperfeccionistas, cineastas a quem não
incomoda muito uma imagem levemente desfocada, uma câmera tremida, um leve vacilo
do ator, desde que o resto esteja ótimo.
O público não percebe. Quem se preocupa com isso é o espectador chato,
que vai ao cinema com cadernetinha para anotar erros de continuidade, ou
anacronismos (“O filme se passa em 1952, mas esse modelo de camionete só foi
lançado em 1953...”).
Os Perfeccionistas acabam sempre superados com o passar do tempo,
pois a técnica não pára de evoluir, e os filmes deles, 20 ou 30 anos depois,
estarão cheios de “defeitos novos”, defeitos que não existiam na época em que os
filmes foram feitos, mas que o público de 2055 irá perceber como defeitos,
insuficiências.
Já os Imperfeccionistas, que não esquentam a cabeça com
as “coisinhas que poderiam ter sido melhoradas”, têm a seu favor o trunfo da
verdade. Se o seu filme é verdadeiro, se tem vigor narrativo, se tem presença
humana, se cria na tela um mundo acreditável com revelações aceitáveis, ninguém
vai ligar para a parede-de-compensado que balança ou para a luz que piscou.
2 comentários:
Brilhante !
Mestre Bráulio, o Mundo Fantasmo é sempre bom, ótimo e excelente. Mas nos últimos textos, desde aquele sobre esquecimentos, está se superando a cada postagem. Continuo na campanha para que virem livros.
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