The
book, pra variar, is on the table.
Por variados motivos andei catando milho nas páginas do Ulisses de James Joyce, que infelizmente
não tenho em papelivro – tenho cópia eletrônica (PDF) da edição em inglês, e
também da tradução de Caetano W. Galindo, de quem já acompanhei com proveito
palestras e entrevistas. Gosto do formato literatrônico, que tem a grande
vantagem de buscar trechos específicos com velocidade Aladínica.
Ulisses é um
livro onde se aprende muito, se a gente abre mão da obrigação de entender tudo.
Ou de lê-lo por inteiro. Alguém já viu o Louvre por inteiro? Já viu o MoMa por
inteiro, ou até mesmo nosso querido MAM carioca por inteiro? Não. Esses lugares
são para visitas frequentes e descobertas-de-surpresa. Em cada chegada-ali a
gente aprende e decifra alguma coisa, e volta para casa com uma vitoriazinha
nova na algibeira do espírito.
Uma das dificuldades que sempre tive com o Ulisses foi o fato de que sou um leitor
tradicionalista, quase caretão. Sou da escola de Conan Doyle, Maupassant e
Erico Verissimo. Gosto de textos onde os
ambientes e personagens são visualmente descritos de forma até didática, onde
quando há um diálogo sabemos quem foi que falou, e temos sempre uma noção clara
do tempo e do espaço onde acontece a cena que estamos lendo.
É justamente para não ficar atolado nesse formato que frequento
a literatura de vanguarda, assim como quem durante a semana está no feijão-com-arroz
caseiro, e no domingo vai a um restaurante tailandês ou baiano. Temos que
empurrar o horizonte com a testa.
E nessas fugidas ocasionais para conhecer o Ulisses acabei descobrindo uma série de
filmes que me trazem o mundo visual da história, esse mundo que a descrição faiscadora
e ziguezagueante de Joyce me negaceia o tempo todo. E aqui vão algumas dicas; todos
podem ser encontrados no YouTube ou em serviços de “streaming”.
1
James
Joyce’s Ulysses (Channel 4)
https://www.youtube.com/watch?v=Ob3NWUtCCJI&t=1123s
Um desses documentários é James Joyce’s Ulysses, uma produção do Channel 4, da série “Ten
Great Writers of the Modern World”. A direção e adaptação são de Nigel Watts e
Gillian Greenwood. Este filme de uma hora de duração alterna imagens de arquivo
da vida de Joyce, depoimentos de Anthony Burgess e Clive Hart, e cenas
produzidas com atores reconstituindo episódios da vida de Joyce e do romance.
(James Aubrey,
como “Frank Budgen”, e Brian Murray como “James Joyce”)
Durante seus anos em Zurique, Joyce criou uma amizade com
o artista plástico (e funcionário do governo britânico) Frank Budgen. Os dois
tinham gostos e temperamentos parecidos, viram-se com frequência durante anos. Essa amizade resultou num dos livros mais
legíveis sobre a obra joyceana: James
Joyce and the Making of Ulysses (1934), onde ele alterna reconstituições de
conversas entre os dois, e interpretações próprias sobre o romance.
Budgen era um homem culto, bem-humorado, sem frescura. Alguns
diálogos entre ele e Joyce são encenados no filme, com atores.
(David Suchet, como “Leopold Bloom”)
Mais interessantes são as encenações de trechos do Ulysses, tendo David Suchet (o conhecido
“Hercule Poirot” de dezenas de filmes) no papel de Leopold Bloom, John Lynch no
de Stephen Dedalus, e Sorche Cusack como Molly Bloom. E não deixa de ser
divertido ver os depoimentos de Anthony Burgess (Laranja Mecânica, etc.), um escritor que admiro, com seu terno
xadrezado, sua cara rubicunda, sua voz de barítono encatarrado, parecendo um
irmão mais velho de Van Morrison.
2
O Ulisses de Joseph Strick
https://www.youtube.com/watch?v=h7xAM_eXuuk&t=5044s
(Maurice Roëves,
como “Stephen Dedalus”, e Milo O’Shea, como “Leopold Bloom”)
A mais corajosa adaptação do romance foi dirigida em 1967
por Joseph Strick (1923-2010), documentarista, engenheiro, inventor. Dizem que
ele era o dono da única residência nos EUA com projeto de Oscar Niemeyer. Ganhou
um Oscar de “Melhor Documentário” (Interviews with My Lai Veterans, 1970) e em Londres
foi diretor da Royal Shakespeare Company.
Sua adaptação do Ulisses,
filmada em preto-e-branco, está no YouTube. Não tem legendas em português, mas
é possível acompanhar os diálogos nas legendas “Closed Captions”, que
transcrevem o áudio. Essas legendas são dos primórdios da Inteligência
Artificial, e são uma diversão à parte, porque a interpretação dos áudios é
deficiente e o que aparece nas legendas, de vez em quando, é Zé Limeira puro, é
algo que “out-Joyces Joyce”.
Diversão à parte, é um filme útil para quem tem à mão (e
na memória) uma descrição explicativa de cada episódio do romance. Ulisses não é um livro onde você entra a
toda velocidade, ao volante de uma Ferrari. É um livro para ler sobre, estudar
a respeito, consultar resumos e sinopses, ver filmes (mesmo sem entender o
inglês)... Ir chegando aos poucos, dando voltas em torno da cidade sitiada,
como fez Josué circundando Jericó, até ser capaz de derrubar suas muralhas com
o mero soar das trombetas. Boa sorte.
3
James Joyce’s Women, de Fionnula
Flanagan (1985)
https://www.youtube.com/watch?v=ivhmaIjmXBw&t=3179s
(Fionnula Flanagan, como "Nora Barnacle")
Também no providencial YouTube encontra-se a versão
cinematográfica de James Joyce’s Women,
uma peça teatral concebida e interpretada pela atriz irlandesa Fionnula
Flanagan. É um projeto ambicioso e, pela parte que me toca, extremamente bem
sucedido. Fionnula concebeu a peça (e depois o filme) em torno das personagens
femininas da vida de James Joyce (sua esposa Nora Barnacle, sua mecenas Harriet
Shaw Weaver, sua editora Sylvia Beach), bem como personagens dos seus romances
(Molly Bloom, Gertie MacDowell, etc.).
(Fionnula Flanagan, como "Gertie Mac Dowell")
O projeto de Ms. Flanagan é atemorizante (produzir,
escrever e interpretar um texto assim), mas o fato é que ela consegue costurar
todas essas figuras femininas numa colcha-de-retalhos em que cada pedaço revela
coisas novas dos livros, do escritor, do papel que essas mulheres tiveram em
sua vida. Principalmente Nora, a mulher com quem Joyce manteve um casamento
tumultuado mas leal até o dia em que morreu, uma mulher não-intelectual,
pragmática, irônica, que não lia os livros do marido mas o defendia na-porrada
se preciso fosse.
De Nora
Barnacle, dizia o amigo de Joyce, Frank Budgen (James Joyce and the Making of Ulysses, Indiana University Press,
1960)
Mrs. Joyce tem uma presença impositiva, mas o que mais impressiona as
pessoas de suas relações é a sua absoluta independência. Seus julgamentos a
respeito das pessoas e das coisas são sempre rápidos e diretos, e procedem de
uma escala de valores inteiramente pessoal, que não imita nem se dobra a
ninguém. (Cap. II, trad. BT)
(Fionnula Flanagan, como "Molly Bloom")
Fionnula Flanagan é uma camaleoa diante da câmera,
pulando de personagem em personagem com metamorfoses e coerência. E nos deixa
imaginando como seria (im)possível fazer no palco, em tempo real, essa gincana
de reencarnações. O filme tem como subtítulo “An Erotic Masterpiece”, e teve
problemas com a censura (tal como o livro), até porque reconstitui as cenas de
masturbação, do urinol, etc.
4
Bloom, de Sean Walsh (2003)
https://www.ulysses.ie/watch
Também pode ser vista em streaming esta adaptação do romance dirigida por Sean Walsh. É
interessante ver esse filme em paralelo com a adaptação de Joseph Strick,
porque cada diretor visualiza as cenas à sua maneira, mas ainda assim vê-se uma
convergência que resulta da leitura atenta do livro, em ambos os casos.
Walsh é um diretor mais pragmático, menos conceitual do
que Joseph Strick. Seu objetivo declarado não é fazer uma obra-prima a partir
de outra obra-prima, mas transformar um livro tido como inacessível numa
história audio-visual que qualquer um pode acompanhar.
Esta matéria do The
Guardian mostra algumas qualidades e limitações do filme, e transcreve as
declarações de Sean Walsh a respeito:
https://www.theguardian.com/film/2003/nov/23/classics.books
***
“Precisamos mesmo disso tudo para ler um simples livro?”,
pergunta alguém. Eu diria que sim, precisamos (ou pelo menos EU preciso),
porque não se trata de cumprir a tarefa de ler um romance, dar um suspiro de
alívio, e riscar aquele título na lista das obrigações. Um grande livro é para
ser frequentado.
“O Ulisses é
para todo mundo?” Não, não é. Nenhum livro é para todo mundo. Isso vale tanto
para o Ulisses quanto para Brás Cubas, O Pequeno Príncipe, as Memórias
de Sherlock Holmes, A Rosa do Povo,
Catatau, Meu Pé de Laranja Lima. Cada livro tem seu público. Escolha seus
livros, e deixe o resto em paz.
Entre outras coisas, Ulisses
é feito (penso eu) para quem tem paixão pela palavra, mania, doença pela
palavra. É curioso perceber que nem todo mundo tem isso, e mesmo muitos grandes
intelectuais, escritores, poetas, cientistas sociais, não têm. Gostam das
idéias, de preferências as idéias grandiosas, vastas, importantes. Usam a
palavra como usam o dinheiro: por uma mera convenção social.
Joyce tinha adicção pela palavra. Edmund Wilson observa
com agudeza (O Castelo de Axel, trad.
José Paulo Paes):
O livro se torna muito mais compreensível a literatos do que a pessoas
desprovidas de “mentalidade verbal”, pessoas cujas mentes não engendram
palavras em resposta a sensações, emoções e pensamentos.
Já acompanhei nas redes sociais discussões curiosas entre
pessoas que “têm uma vozinha (ou várias) falando na cabeça o tempo todo” e
pessoas que confessam só recorrer à verbalização quando precisam falar ou
escrever algo. Bem – eu sou do primeiro tipo, e aposto meu Dicionário Houaiss que James Joyce também era assim; e não só ele,
como Guimarães Rosa, Lewis Carroll, Jessier Quirino e Jacques Lacan.
Não se trata de erudição,
embora em alguns casos a erudição nos venha em socorro. Trata-se de
experimentar um prazer sinestésico, quase físico, no ato de desmontar e
remontar uma palavra nova, de fazer, desfazer e refazer uma frase besta para dizer que “o
livre está na mesma”.
Joyce divertia-se muito com a própria escrita. Costumava presentear
o Ulisses a garçons e a porteiros de
hotel, acreditando que estes seriam capazes de captar sua usina de gírias, suas
alusões fesceninas, seu humor de cabaré.
Dizia seu amigo Frank Budgen:
Joyce tem uma gargalhada longa, clara, cheia de divertimento diante dos
próprios enganos. Uma gargalhada é um ato significativo. A gargalhada de Joyce
é livre e espontânea. É o tipo de risada provocada pelas incongruências
solenes, as trapaças malandras e as atrapalhações inesperadas da vida social,
mas nela não há nenhuma malícia nem Schadenfreude, a alegria com a
desgraça alheia. A risada dele é do tipo que a gente esperaria ouvir caso o presidente
da república botasse na cabeça o chapéu errado, mas não se uma rajada de vento
jogasse o chapéu de um homem pobre na sarjeta. (Cap. I, trad. BT)