Uma das lendas que se contam sobre Kris Kristofferson é
que ele trabalhava de faxineiro num estúdio de Nashville para poder se
aproximar de cantores ou bandas, e interessá-los nas suas canções. Limpando os
cinzeiros cheios de baganas, varrendo o chão, arrastando amplificadores,
esticando fios, ele ia se aproximando dos músicos, amparado naquele jeitão de
caipira simpático, até aquele momento, no balcão da lanchonete do estúdio, em
que podia enfiar a mão no bolso do macacão e puxar uma letra rabiscada: “Bem,
por falar em composições...”
Deve ser verdade, porque ele de fato fez esse trabalho;
mas a esta altura ele já ganhara um diploma em Literatura Inglesa por Oxford
(com dissertação sobre William Blake) e tinha sido piloto de helicóptero no
Exército, de modo que a faxina não era exatamente por falta de oportunidades ou
de qualificação.
Kristofferson, que morreu no sábado passado, aos 88 anos,
teve uma carreira irregular, tanto como músico quanto como ator de cinema. Em casos
assim, são os pontos altos que fazemos questão de lembrar. Por que? Talvez
porque coisas ruins qualquer um de nós é capaz de fazer, mas quantos de nós
serão capazes de compor uma canção como “Me and Bobby McGee”?
Aqui, a clássica gravação de Janis Joplin
https://www.youtube.com/watch?v=sfjon-ZTqzU
Uma canção-de-estrada que ficou clássica, todo mundo
gravou (eu não gravei, mas fiz uma versão), mas o primeiro Grammy lhe chegou às
mãos com “Help Me Make It Through The Night” (Melhor Canção Country).
Aqui, na voz do próprio:
https://www.youtube.com/watch?v=CksF7Kr7Drw
Virou referência dentro da música country à qual ele trouxe algo de um folk-rock claramente urbano, cosmopolita, intelectual. Mas suas
imagens nunca foram sofisticadas como as de Bob Dylan e companhia. Nick Cave o
citou na canção “Frogs”, e explicou a citação em sua newsletter The Red Hand
Files (# 289):
“Kris Kristofferson passa por mim, chutando uma lata / com uma camisa
que ele não lava há anos...” Os fãs da
música country irão entender esta referência à grande canção de
Kristofferson sobre desolação espiritual, “Sunday Morning Coming Down”, na qual
o narrador acorda num domingo de manhã, esgotado e com a maior ressaca, e veste
“a mais limpa das camisas sujas”. Pode pesquisar.
(trad. BT)
Como ator, ele nunca foi um Marlon Brando, e era modesto
ao avaliar seu trabalho. Dizia que só aceitava um papel se entendesse o roteiro
e o personagem; e depois tentava ser o personagem diante das câmeras. Foi mais
ou menos o que fez nos filmes que vi com ele.
Tinha aquele ar à vontade de quem está confortável no
próprio corpo; e aquela masculinidade tranquila de quem exerceu muitas
tarefas braçais e leu bastante. Uma coisa compensa os defeitos da outra, não é
verdade? Era daquele time de atores que inclui Brando, Nick Nolte, Josh
Brolin... Uma amiga minha dizia que ele “era masculino sem precisar fazer
força”.
(Kristofferson e Bob Dylan em Pat Garrett e Billy the Kid)
Vou procurar aqui se ainda tenho o DVD de Pat Garrett and Billy the Kid (1973, Sam Peckinpah), um filme
curioso que não é uma grande obra cinematográfica, não tem uma trilha sonora
excepcional (a não ser pelo clássico “Knockin’ on Heaven’s Door”), não é o
melhor filme de seu diretor (eu votaria em The
Wild Bunch) nem tem interpretações memoráveis do elenco: mas, com todos os
seus defeitos é uma obra marcante. Por quê, ninguém sabe até hoje.
Kristofferson fez nesse filme o papel título de Billy The
Kid, o famoso assassino que
matou 21 homens antes de morrer aos 21 anos de idade. Billy era um desses
bandidos sem nenhuma faceta redentora: era só bandido mesmo, bandido cruel e
meio obtuso, sem revolta social, sem atitudes românticas. O cinema tentou
modificá-lo mais de uma vez.
Para fazer a trilha sonora do filme, Kristofferson e seu
empresário Bert Block convidaram Bob Dylan – de quem KK se tornara amigo desde
os tempos dos estúdios de Nashville. (Há relatos de que na canção “Lay Lady
Lay”, do álbum Nashville Skyline, era
Kristofferson quem segurava o bongô tocado pelo baterista Kenny Buttrey.)
Dylan hesitou, mas acabou aceitando depois que assistiu
alguns filmes do diretor: Meu Ódio Será
Tua Herança (“The Wild Bunch”), A
Morte Não Manda Recado (“The Ballad of Cable Hogue”), Sob o Domínio do Medo (“Straw Dogs”) e principalmente Pistoleiros do Entardecer (“Ride the
High Country”).
Para fazer o papel do pistoleiro de 21 anos,
Kristofferson, então com 37, teve que raspar a barba, o que, aliado ao seu
rosto largo, acabou lhe dando um aspecto de “bebezão” no filme. Dylan, pequeno,
meio desajeitado, barba rala, roupas desarrumadas, faz o papel de “Alias”, um
coadjuvante sem muito a fazer, mas que visualmente lembra muito mais a figura
de Billy.
(Billy The Kid)
(Dylan como "Alias")
As filmagens foram um caos, e apenas duas coisas
prenderam Dylan (a esta altura um astro-pop, milionário) até o fim. A primeira
é que ele resolveu considerar este trabalho um curso informal e gratuito sobre
como dirigir um filme – lições que ele iria pôr em prática depois, no
não-muito-bem-sucedido Renaldo e Clara. A
segunda foi a amizade com Kristofferson, que o ajudou a aguentar as explosões
machistas e temperamentais do diretor.
Diz Howard Sounes, em Dylan,
a Biografia (Conrad, 2002, trad. Leila de Souza Mendes):
Dylan e Kristofferson estavam na sala de projeção assistindo um copião
quando Peckinpah mijou por toda a tela porque a imagem estava fora de foco. “Eu
me lembro de Bob se virar e olhar para mim na reação mais adequada do mundo,
sabe como é, em que diabo nós nos metemos”, diz Kristofferson.
O que não impediu que ele voltasse a trabalhar com
Peckinpah anos depois, no papel principal de Comboio (“Convoy”, 1978), onde ele faz um motorista de caminhão que
se envolve numa rebelião coletiva de caminhoneiros perseguidos por policiais. A
insurreição, violenta e festiva, guiada por rádio, lembra Corrida Contra o Destino (“Vanishing Point”, Richard Sarafian).
Foi um dos últimos filmes do caótico Peckinpah, mas que
David Thomson (A Biographical Dictionary
of Film, 1981) considera “o filme mais descontraído de todos os que fez,
flagrantemente bobo em sua dramatização da canção de C. W. McCall, mas
divertido, com o aspecto de uma balada tradicional, e imbuído de um senso da
beleza do deserto e do espetáculo dos caminhões, que lembram uma justa entre
cavaleiros medievais”.
De pistoleiro do faroeste a caminhoneiro, Kristofferson
se dedicou a personagens parecidos com ele, rudes, aventureiros, lúcidos na
avaliação das situações em que se metem, impulsivos o bastante para persegui-las
até o fim, impondo-se em qualquer ambiente com uma presença masculina capaz de fazer
os homens darem um passo atrás e as mulheres darem um passo à frente.
Como compositor, foi sempre um rapaz da música country, das melodias simples dedilhadas
no violão de cordas de aço, mais próximo de Tin Pan Alley do que do Greenwich
Village, mas igualmente à vontade em ambos. Durante algum tempo fez parte do
supergrupo “The Highwaymen”, um quarteto de pesos-pesados da música country.
(The Highwaymen: Willie Nelson, Kris
Kristofferson, Johnny Cash e Waylon Jennings)
Na juventude, Kristofferson tinha ambições de se tornar
escritor – e quem não tem? Aos 18 anos, duas histórias suas foram premiadas num
concurso do Pomona College, onde estudou. As duas (publicadas depois no Atlantic Magazine) podem ser lidas aqui:
https://kriskristoffersonfan.com/sample-page/biography/kris-kristofferson-short-stories/
Sempre bem-humorado, ele recordava com gosto seus tempos
de estudante e dizia: “Acho que eu e Bill Clinton conseguimos desfazer
quaisquer ilusões que as pessoas tivessem sobre o brilhantismo dos alunos do
Pomona College”.
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