No ano de 2010, quando se completaram 80 anos da
publicação original de Alguma Poesia
(1930), o primeiro livro de Carlos Drummond, comecei a fazer aqui um balanço
desse livro, um registro meio informal, meio impressionista, comentando de
poema em poema. Pelos meus cálculos, só falta um: este de hoje.
(Nunca sei se meus cálculos merecem confiança, mas
calculo assim mesmo. Sou um pouco como o Sheldon Cooper de The Big Bang Theory: “Vocês não acham que, se eu estivesse errado,
eu perceberia?!...”)
“No Meio do Caminho”, o famoso “poema da pedra”, é um dos
poemas mais injustamente famosos de Drummond. Digo “injustamente” porque vejo
muita gente a elogiá-lo (o que é
natural), mas não o vejo atraindo tanta atenção quanto “A Luís Maurício,
Infante”, “Nosso Tempo”, “Caso do Vestido”, “A Máquina do Mundo”, “Os Ombros
Suportam o Mundo”, “Campo de Flores”...
Paciência. O poema da pedra despedaçou vidraças mentais
pelo Brasil afora, estragou o piquenique lírico de muitos poetas e muitos
leitores para os quais a poesia funcionava como uma espécie de
arranjo-de-flores para botar no centro da mesa. Drummond admitiu mais de uma
vez que não achava que o poema fosse grande coisa, e que a reação a ele o
surpreendeu.
Foi um dos poemas mais discutidos, mais insultados e mais
escarnecidos de sua época. E, bem ou mal, são coisas desse tipo que fazem a
fama de quem escreve.
Drummond deu-se o trabalho de guardar uma enorme coleção
de recortes e de citações da imprensa a respeito do poema. A coleção resultou
no livro Uma Pedra no Meio do Caminho –
Biografia de um Poema (Rio: Editora do Autor, 1967), um documento precioso
sobre as idas e vindas dos juízos críticos sobre nossa literatura.
Já escrevi aqui no Mundo Fantasmo sobre esse livro:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/12/1396-pedra-no-meio-do-caminho-492007.html
É um bom poema? É um poema ruim? É o maior poema
modernista? É uma abominação?
Não é nada disso, mas é um sintoma curioso de algumas
situações presentes na história da Arte. Todo conceito de Arte (assim mesmo,
com “A” maiúsculo) é totalmente subjetivo. Ninguém tem como afirmar, com objetividade
científica, que a obra de arte X é genial e que a obra de arte Y é péssima. Não
há critérios objetivos para medir isso.
Por que? Porque os critérios estéticos são uma mistura do
pessoal e do coletivo, são uma combinação entre o famoso “gosto pessoal” e as
igualmente famosas “formas aceitas”, as formas que cada grupo social elege (e
renova, periodicamente) como sendo importantes, significativas, belas,
verdadeiras, etc.
O gosto artístico é um conjunto de critérios e opiniões,
sempre em constante mutação, no interior de um conjunto de pessoas. E esse conjunto é permanentemente comparado
com os conjuntos cultivados no mesmo país, e até na mesma cidade.
Quando surge uma obra que chuta o pau da barraca e
desobedece de forma acintosa a essas formas aceitas, isso gera um ruído e um
problema. Certos artistas fazem isso de propósito: “vim aqui para arrebentar os
conceitos”, “vim desafinar o coro dos contentes”, “vim fazer chover no
piquenique”, etc.
Outros o fazem meio sem querer, como pode ter sido o caso
de Carlos Drummond, que em sua fase inicial, aplicadamente modernista, cometeu
alguns poemas até mais heréticos do que o da pedra, mas que não produziram o
mesmo abalo.
O poema piada, o poema gracejo, o poema
rabisco-apressado, o poema trocadilho... tudo isso foi largamente praticado
pelo poeta mineiro e seus amigos de geração – num tempo em que a “forma aceita”
era o desabafo lírico-sentimental ou épico-grandiloquente.
Toda forma de Arte é também uma zona de conforto, uma
bolha de auto-suficiência, um território demarcado onde muita gente se dá bem
porque sabe manejar a linguagem dominante. Quando aparece uma obra
transgressora, que denuncia a inevitável artificialidade dessa linguagem, ou expõe
seu caráter de mera convenção passageira, essa obra incomoda. É o garotinho da
fábula denunciando que o rei está nu.
E é de se esperar que esses transgressores sejam
apedrejados, sejam barrados no baile, sejam banidos dos currículos, sejam
sabotados na imprensa.
Carlos Drummond dividiu seu livro-coletânea em várias
seções, de acordo com o tipo de atitude ou abordagem. Críticas boas e ruins,
ironias, elogios, insultos, ofensas, recusas irritadas, registros com bom
humor... Tudo isso saudou o aparecimento do poema da pedra.
Traduções, também. A seção “A pedra vai pelo mundo”
transcreve versões em húngaro (Paulo Rónai), espanhol (Gastón Figueira), francês
(Michel Simon), italiano (Ruggero Jacobi), alemão (Curt Meyer-Clason), inglês
(John Nist) e vietnamita (Nguyén Ngoc Bich).
Aqui, a
versão em inglês de John Nist (em In the
Middle of the Road, Tucson, University of Arizona Press, 1965):
In the middle of the road was a stone
was a stone in the middle of the road
was a stone
in the middle of the road was a stone.
I shall never forget that event
In the life of my so tired eyes.
I shall never forget that in the middle of the
road
was a stone
was a stone in the middle of the road
in the middle of the road was a stone.
Se quisermos ser criativos, em traduções assim, há uma
certa latitude de movimentos, porque tanto pedra quanto caminho admitem ser
poeticamente traduzidos por diferentes termos: stone, rock, pebble, etc. /
road, path, way, etc.
Nos meus tempos de roqueiro e parafraseador (mais que
tradutor) diletante, cheguei a rabiscar:
There was a rock on
the road
on the road there was
a rock
a rock
on the road there was
a rock…
A pedra acabou, meio involuntariamente, somando-se a
outras pedras famosas de nossa literatura: a Pedra do Reino, de Ariano
Suassuna, a educação pela pedra e a “pedra do sono”, de João Cabral, a Pedra
Bonita, de José Lins do Rego...
O poemazinho despretensioso acabou retrocedendo a segundo
plano. Embora tenha se pregado de forma
definitiva, na memória popular, à lembrança e à imagem do seu autor, a ninguém
ocorre definir por ele a contribuição de Drummond à poesia brasileira. Há muito
mais Drummond para um leitor mergulhar.
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