(Emily Dickinson)
Um poema de Emily Dickinson (1830-1886)
“Esperança” – um ser de plumas
que nos pousa na alma,
e canta uma canção sem versos
e nunca se acalma.
Soa mais doce quando há temporal;
e é forte a tempestade
capaz de calar tal passarinho
que aquece a humanidade.
Já ouvi seu canto nas terras mais geladas
e no oceano, entre o trovão;
e nunca, mesmo à morte, me pediu
uma
migalha de pão.
“Hope” is the thing with
feathers -
That perches in the soul -
And sings the tune without
the words -
And never stops - at all -
And sweetest - in the Gale
- is heard -
And sore must be the storm
-
That could abash the little
Bird
That kept so many warm -
I’ve heard it in the
chillest land -
And on the strangest Sea -
Yet - never - in Extremity,
It asked a crumb - of me.
*****
Emily Dickinson usava com frequência em seus poemas o
formato que em inglês de chama de common
metre (ou “common measure”), o
“metro (ou métrica) comum”, algo tão impregnado na poesia em língua inglesa
quanto a redondilha em nosso idioma.
O common metre consiste
basicamente numa estrofe de 4 linhas, respectivamente com 8, 6, 8 e 6 sílabas.
É uma métrica muito presente, por exemplos, nos hinos religiosos – o exemplo
sempre citado nos manuais é “Amazing Grace”.
Amazing grace, how sweet the sound
that saved a wretched like me…
I once was lost, but now I’m found,
Was blind, but now I see…
Aqui, uma palhinha desse hino americaníssimo, na voz de Elvis Presley:
https://www.youtube.com/watch?v=AEgG63MCa0I
Hinos religiosos eram uma parte importante da vida de Emily Dickinson, uma
mulher tímida, introspectiva, de vida espiritual muito intensa, e uma poesia
que não se parece com a poesia de ninguém, antes ou depois dela.
A Enciclopédia Britânica Online (https://www.britannica.com/art/common-metre)
assim comenta esse verso:
Common metre, a metre used in English
ballads that is equivalent to ballad metre, though
ballad metre is often less regular and more conversational than common metre.
Whereas ballad metre usually has a variable number of unaccented syllables, common metre
consists of regular iambic lines
with an equal number of stressed and unstressed syllables.
O que este trecho diz, basicamente, é que tanto o common metre quanto a balada usam um esquema de sílabas e de
rimas praticamente igual, mas “a métrica da balada é menos regular e mais conversacional,
mais coloquial, do que o common metre”.
Este, por sua vez, repousa de maneira muito mais obrigatória no número e na
posição das sílabas acentuadas.
Cabe então observar esta distinção entre os dois estilos,
do ponto de vista métrico. É uma cadência muito dependente da música – o hino
religioso versus a canção narrativa, no
caso da balada. A impressão que tenho é de uma certa rigidez métrica no common metre e uma flexibilidade maior
na balada. Talvez porque o primeiro se destina ao canto coletivo, uníssono,
geralmente durante um culto; e a balada seja o canto solo de um narrador, com
mais autonomia para cadenciar acentuação, andamento, etc.
“Métrica”, a meu ver, é um conceito capaz de acomodar sem
conflito estas duas modalidades de ritmo (porque a métrica é basicamente um
ritmo sonoro, embora sirva também como referência visual no caso do poema
impresso). De um lado, um ritmo mais rígido, mais obrigatório, mais previsível,
com sílabas fracas e fortes sempre em posições previamente estabelecidas; e de
outro lado um ritmo mais fluido, solto, maleável, que o tempo inteiro tem em
mente aquela forma estabelecida, mas sente-se livre para manejá-la com um certo
jogo de cintura, afastando-se dela mas não muito, e a todo instante voltando a
ela para reafirmá-la.
São duas maneiras de metrificar, ambas corretas e
legítimas.
(João Cabral de Nelo Neto)
No Brasil, vemos algo assim, curiosamente, na obra de
João Cabral de Melo Neto. Cabral é universalmente considerado o poeta do rigor,
da exatidão, da verbalização precisa, da consciência permanente das estruturas
visuais e sonoras com que está trabalhando. Ao mesmo tempo, compensa este rigor
com o uso franco e livre da inexatidão, da imprecisão.
Cabral usa largamente a rima toante, ou inexata, e o faz
ao modo do Romanceiro Ibérico, misturando-a à rima consoante ou exata (que
exige equivalência de sons a partir da vogal da sílaba tônica).
É na métrica, contudo, que ele se movimenta com mais
liberdade ainda, e não são poucos os seus poemas em que a redondilha maior
(verso de sete sílabas) flutua ao sabor da leitura, encolhendo-se em seis
sílabas, dilatando-se para oito e até nove, mas sempre voltando ao centro, sem
nunca se afastar demais numa ou noutra direção.
A contagem da métrica de um verso é sempre uma operação
subjetiva. Praticamente todo verso pode ter sua cadência modificada pela voz
interna do leitor, através de elisões, hiatos, ditongos, diferentes encontros
de vogais e semivogais, um vasto repertório de indicações escritas que cada
leitor “sonoriza” a seu modo.
Na poesia de João Cabral de Melo Neto, há poemas onde o
verso de sete sílabas é o modelo predominante, mas a todo instante encontramos
outros que admitem apenas uma leitura de seis ou de oito sílabas, e não há
artifício recitativo que os encaixe em sete. Cabral não trata a cadência como
um “leito de Procusto”a que os versos tenham que se adaptar a qualquer preço; para
ele, aquela medida é um norte, um referencial, um valor rítmico principal que
precisa ser observado mas admite uma certa flutuação, um certo suingue. O ritmo
poético é uma forma de dança, mas nem sempre busca uma precisão com a das
bailarinas de Báli – pode hospedar também a relativa liberdade de um samba
sincopado, ou de um frevo que quebra, retarda e solta a melodia sem perder o
andamento.
(Augusto de Campos)
Voltando, agora, à tradução poética:
Perfeccionistas como Augusto de Campos se dedicam a
produzir, em nossa língua, uma versão quase isomórfica de um poema estrangeiro,
fazendo um malabarismo estonteante com todas as variáveis envolvidas: formato
de estrofe, esquema de rimas, métrica dos versos (uniforme ou variada), rigor
na prosódia obedecendo às acentuações rítmicas do original... e mesmo com esta
grade de restrições conseguem reproduzir também, com sucesso, as idéias (a
“logopéia”), as imagens visuais (a “fanopéia”), as metáforas e os símbolos do
original, além de achar correspondência para o seu “tom” emocional, o seu
léxico de época (quando é o caso), suas alusões culturais e históricas,
etc. Não é pouco!
Esta é uma opção tradutória exigente, rigorosa, que tenta
resgatar a “melopéia” original do poema, seu arcabouço de sons, de ecos e
assonâncias, sua estrutura auditiva. Vejo essa opção como uma reação a um
estilo “conteudístico” de traduzir, no qual o importante era reproduzir “o que
estava sendo dito”, sem preocupação maior com os aspectos sonoros.
É possível, em muitos casos, tentar conciliar estes dois
lados. Num poema de métrica inflexível, um decassílabo, por exemplo, pode-se
permitir uma certa liberdade de movimentos, para que o tradutor, encontrando
uma correspondência feliz com o original, não a jogue na cesta do lixo apenas
porque o verso resultante chega a onze ou doze.
Uma certa liberdade quanto à rima – usar rimas toantes
aqui e ali, mesmo que o original se limite a rimas exatas. Isto pode parecer
preguiça ou desatenção, mas muitas vezes esse recurso, sem abrir mão da rima
por completo, expande o glossário acessível ao tradutor, e pode resultar numa
versão com ganhos significativos em outras dimensões do poema.
(Cynthia Nixon
como Emily Dickinson, no filme de Terence Davies “A Quiet Passion”)
Um comentário:
"Esperança" é a coisa com penas
Que pousa na alma de um
E canta a melodia sem palavras
E nunca para, de jeito algum
E mais doce é ouvida em ventania
Mas dolorosa deve ser a tempestade
De tal forma que se constranja ao passarinho
Que manteve tantos ninhos aquecidos
Ouvi isso na terra mais fria
Mas e mesmo, no mar mais extremo
Jamais mendigou um bocado, a mim.
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