sexta-feira, 9 de junho de 2023

4950) O escritor enquanto Deus (9.6.2023)



(Ernest Hemingway)
 

Uma idéia que tento sempre passar (em cursos, oficinas, etc.), para quem quer fazer literatura de ficção, é o fato de que o escritor é o Deus de sua história. Não um Deus onipotente, onisciente e onipresente, mas em todo caso um Deus como aqueles da mitologia, com o poder de fazer as coisas acontecerem de acordo com a sua vontade. Inclusive de acordo com as suas venetas, com os seus impulsos.
 
Todo mundo sabe disso, concordo, mas uma coisa é saber, e outra coisa é descobrir por conta própria. 
 
Minha descoberta se deu, em grande parte, numa noite décadas atrás, no período paleozóico conhecido como “a Era da Olivetti Mecânica”. Eu tinha acabado um trabalho que me consumiu uns dois meses, trabalho remunerado, “para fora”, ou seja, uma coisa estritamente profissional. Entreguei, tive uma reunião matinal que entrou pela tarde, e o projeto foi aprovado integralmente, com aperto de mãos e promessa de depósito em breve. Voltei para casa aliviado e triunfante.
 
De noite resolvi dedicar-me aos meus projetos pessoais, ou seja, à primeira idéia genial que me viesse à cabeça, coisa que acontecia quando eu estava, como naquela noite, com uma cerveja aberta à frente, uma lauda em branco no rolo da máquina, e um cigarro Galaxy aceso entre os dedos (era no tempo em que eu fumava essa desgraça). 
 
Comecei a bolar um conto meio ao acaso, um conto mezzo Rubem Fonseca mezzo Luiz Vilela. 

Rio de Janeiro, época contemporânea. Um cara sai para beber à noite, e reencontra por acaso um amigo de juventude, lá da Paraíba, que não via há mais de vinte anos. Abraços, euforia, risadas, os dois começam a beber juntos, entram naquele estágio de “e Fulano, que fim levou?”, “tem visto Sicrana, como vai ela?”, “e tua família, todos bem?” – porque é assim o ser humano, passa dez anos sem nem se lembrar de alguém, mas na primeira chance quer saber da vida. 
 
Os caras começam a beber no Largo do Machado, depois vão até a Lapa, porque o Nova Capela nunca fecha, de lá vão para um subúrbio, porque não estão bêbados, e o que está ao volante (a história é contada do ponto de vista dele) é experiente. Mas vão para um subúrbio, num bar no meio do matagal, e lá enchem a cara com seriedade. Ao saírem do bar o amigo puxa um assunto antigo, uma discussão que os dois tiveram anos atrás. 
 
Isso não é hora para lembrar disso, defende-se o dono do carro. Não vamos estragar uma noite tão bacana. Você já estragou, naquele dia, diz o amigo, ligeiramente trôpego. Me chamou de pobre e de unha-de-fome. Que é isso, retruca o primeiro. Não me lembro de nada disso. Fiz só uma comparação entre você e seu irmão. Tá vendo como lembra? Diz o outro, em voz pastosa e triunfante. Seu filho da puta. 
 
Para encurtar a história, os dois se enraivecem, brigam, se esmurram, o dono do carro puxa um revólver, alucinado de raiva (acaba de perder um dente da frente, afrouxado por um soco) e dá dois tiros no amigo. Apavora-se. Olha em redor. Bar fechado, matagal, luzes distantes. Ninguém viu. Ele pega o carro e some. 
 
A história vinha sendo contada do ponto de vista dele, mas agora o carro segue um caminho de terra, chega à BR e desaparece ao longe; e a narrativa permanece no local do crime, um parágrafo final descreve o corpo do outro, a vida se esvaindo aos poucos, a poça de sangue aumentando, e ele caído ali, na escuridão, no meio do mato, nos fundos de um terreno baldio que servia de estacionamento. Carros passando ao longe e ele desaparecendo aos poucos. 
 
Fui dormir satisfeito, ou bêbado, o que é a mesma coisa. No outro dia fui pra rua resolver vários assuntos, tive uma tarde atarefada, mas de noite (estava sozinho em casa, minha mulher estava viajando) abri outra cerveja e fui reler o conto. 
 
Fiquei com pena dos caras!  Achei sacanagem – dois amigos se reencontram, tudo bem que no passado houve um desentendimento, se chatearam um com o outro, mas amizade tem que ser como água, que você mexe, agita, tira um pedaço, e ela volta pro formato de antes. Pra que isso? Fiquei com pena do defunto esfriando no matagal. Fiquei com pena do outro, cantando pneu nas curvas da rodovia, o revólver ainda quente guardado no bolso, a ponta da língua tentando manter o dente no lugar. 
 
Amassei a última página, voltei para o teclado e para a história. Sim, eles saem. Eles discutem, mas não tem murro. Era pobre, não era, isso e aquilo, aí o cara do carro puxa o revólver. Nesse instante o outro diz: “Mas Fulano, que história é essa? Tu anda armado agora?”  O cara está furibundo e diz: “Isso aqui é o Rio de Janeiro, seu merda, aqui a pessoa tem que se cuidar, não é aquela bosta da Paraíba onde vocês dormem de janela aberta.” O outro está bêbado mas tem amor próprio, ergue o dedo no ar e diz: “Não insulte a Paraíba, filho ingrato, porque até Lampião tinha medo, só passava por lá pra cortar caminho pro Juazeiro.”
 
Os dois começam a rir. O primeiro abre o tambor do revólver e mostra: “Essa porra está sem bala, eu morro de medo de um acidente”. Se abraçam rindo, mangando um do outro, e vão à procura de um bar aberto, mesmo porque já passa das quatro e meia da madrugada.
 
Ficou melhor o conto? Ficou pior? Não sei, porque foi um dos muitos que numa tarde de verão e impaciência eu rasguei em quatro e enchi com eles um saco de lixo, daqueles de plástico azul. Mas nesse episódio eu me senti não um Deus, mas dois – porque soube que tinha o poder de matar, e o poder de trazer de volta à vida. 
 
Então, quando eu sento para escrever alguma coisa, eu procuro invocar de dentro de mim esse poder, porque não existe coisa mais perigosa neste mundo do que um poder que o indivíduo tem e não utiliza. Esse poder se rebela, ele incha, estoura as costuras da alma, e acaba desequilibrando a vida do sujeito, como um cachorro que a gente compra, bota dentro de casa e deixa crescer sem domesticar. 
 
Tenho inclusive a impressão (não posso mais checar, joguei o conto fora) que os tais amigos eram escritores, e a certa altura um dos dois, nem lembro qual, dizia ao outro: “Não tem sentido você sentar pra contar uma história onde só acontece o banal, aquilo que acontece todo dia na vida de todo dia, ou então, pior ainda, acontece o extraordinário conforme-as-expectativas, o fantástico self-service, a tentativa pálida de reescrever um livro alheio que a gente leu e gostou. O poder-de-fazer-acontecer não deve ser estragado, malbaratado, jogado aos porcos. Faça acontecer coisas que lhe deixem o olho brilhando, a respiração acelerada, a boca seca, o coração batendo e dizendo: caralho, velho, não acredito que isso está acontecendo na tua história!...” 
 
Foi isso que um dos amigos disse pro outro, ou melhor, teria dito, porque na verdade não teve conto nem nada, isso foi só uma coisa que eu estava pensando no sofá da sala, meia hora atrás.