domingo, 9 de abril de 2023

4930) Primeiras Estórias: "Substância" (9.4.2023)



(ilustração: Luhan Dias)


“Substância”, o décimo-nono conto do livro Primeiras Estórias (1962; 3ª. edição) de Guimarães Rosa, é uma experiência interessante de conto com um foco único. Como se fosse um quadro, uma pintura, com uma imagem centralizada – e outros elementos irradiando-se a partir dela. Um quadro que é possível apreender com a visão, de golpe, num instante, e depois examinar os detalhes. 
 
A história, portanto, é simples. Uma menina, de família problemática e violenta, é levada embora para ser criada numa fazenda distante, a fazenda Samburá, de Sionésio (ou Seo Nésio, conforme a técnica rosiana de variar a grafia dos nomes dos personagens). A menina é Maria Exita, e vai trabalhar na fabricação do polvilho que é a especialidade da fazenda, onde se plantam vastas extensões de mandioca.
 
(Digressão: A fabricação do polvilho envolve a limpeza e moagem da mandioca, e a separação do polvilho que depois de sedimentado e endurecido em pedras é posto para secar ao sol, processo que envolve a fase de “quebra pedra”, para que ele seja pulverizado.) 
 
Os anos vão se passando. Seo Nésio, checando cada detalhe da sua propriedade e dos trabalhos, começa a prestar atenção naquela moça formosa e caladinha, quebrando pedras no sol, um trabalho cansativo mas luminoso. Se engraça dela. Acumula em si esse sentimento até não aguentar mais e lhe propor casamento. Ela aceita. Fim da história. 
 
Falei que a história parece um quadro, e é por isso mesmo: porque é intensamente visual, uma fábula da busca da beleza, da luminosidade, e tem algo de processo alquímico nessa descrição de uma pessoa envolvida dia e noite na decantação de uma substância através do sol, do vento e da luz. 
 
“Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes. (p. 152) 
 
“Ela é que quer, diz que gosta. E é mesmo, com efeito...” (p. 152) 
 
“Só no pino do meio-dia – de um sol do qual o passarinho fugiu” (p. 152) 
 
“Alvíssimo, era horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da pessoa tendo de ficar miudinhos fechados.” (p. 152) 
 
“Também, para um pasmar-nos, com ela acontecesse diferente: nem enrugava o rosto, nem espremia ou negava os olhos, mas oferecidos bem abertos – olhos desses, de outra luminosidade.” (p. 153) 
 
“Sua beleza, donde vinha? Sua própria, tão firme pessoa? A imensidão do olhar – doçuras. Se um sorriso; artes como de um descer de anjos.” (p. 153) 
 
“Maria Exita era a para se separar limpa e sem jaças, por cima da vida; e de ninguém. Nela homem nenhum tocava.” (p. 154) 
 
“Servia o polvilho – a ardente espécie singular, secura límpida, material arenoso.” (p. 154) 
 
“Os raios reflexos, que os olhos de Sionésio não podiam suportar, machucados, tanto valesse olhar para o céu e encarar o próprio sol.” (p. 155) 
 
“Entregou os olhos ao polvilho, que ofuscava, na laje, na vez do sol.” (p. 156) 
 
“Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?” (p. 156) 

 

(ilustração: Luís Jardim)

 
Guimarães Rosa disse, no Grande Sertão, que viver é rasgar-se e remendar-se. Na mesma toada podemos sugerir que escrever é plantar, colher, moer e purificar. Como Rosa era notoriamente um estudioso do hermetismo e das ciências ocultas, não há como não ver no conto alusões alquímicas ao processo de transmutação da matéria, onde ocorre a fase do albedo, que corresponde à purificação e decantação da matéria, atingindo pura espiritualidade. 
 
Primeiras Estórias é todo composto de histórias assim, e sem dúvida assustou os leitores acostumados com as obras anteriores. Este livro ganhou um formato-de-conto que Rosa não tinha explorado até então. Os contos de Sagarana (1946) são contos longos e largos, que se expandem como um rio correndo devagar, sem pressa de chegar a lugar nenhum. Contos com 30 ou 40 páginas, e até mais. 
 
Esse formato se expandiu ainda mais nas 7 noveletas que compõem Corpo de Baile (1956). 
 
A prosa torrencial do Grande Sertão: Veredas (1956) é o ponto máximo dessa exuberância narrativa de quem tem muito o que dizer e quer dizê-lo vastamente. 
 
O grande ponto de inflexão na vida e na obra de J. G. Rosa, a grande “virada de esquina” em sua vida é justamente no período entre 1956 (publicação de Corpo de Baile e de Grande Sertão) e 1962 (publicação de Primeiras Estórias). 
 
São os anos da fama, da consagração e da polêmica, e anos de trabalho intenso no Itamaraty. O tempo escasseia, os contos encolhem. A profusão de histórias para contar é a mesma, mas diminuiu o tempo que ele pode dedicar à literatura, e o tempo de vida que sente ter pela frente. Rosa era cardíaco, fumante compulsivo, e dizia: “Eu sou médico, e sei muito bem qual é a minha condição de saúde.” 
 
Ele passou a publicar uma página semanal em O Globo – bem remunerada, certamente – num espaço com tamanho mais ou menos fixo. Daí que os contos de Primeiras Estórias, que é a reunião desse material em livro, tenham todos aproximadamente a mesma extensão. 
 
Algo parecido ocorreria depois com seu último livro, Tutaméia (1967), cujos contos tiveram primeira publicação numa revista médica (Pulso, RJ) e têm um tamanho-padrão ainda mais curto. 
 
Rosa era um ficcionista “fractal”: cada história sua contém muitas outras histórias incrustadas. Na reta final da carreira, foi obrigado a concentrar seu foco criativo num espaço de texto mais estreito e mais intenso. O que era arco-íris concentrou-se em raio laser. 
 
A vida dá o tom do trabalho, impõe um ritmo e um formato. Rosa é um estressado, apesar do permanente bom humor. É um consciencioso, um perfeccionista, um “perseguidor” também – no sentido cortazariano do termo, do artista que não sabe direito o que está criando enquanto não o cria e o contempla. 
 
Aproveitando a referência a Julio Cortázar, podemos dizer que em Primeiras Estórias e em Tutaméia Guimarães Rosa se dedicou a vencer o embate com o leitor por nocaute, e não por pontos. Adotou, por conta própria, a fórmula do autor argentino, adepto do conto uni-direcional, do conto-flecha, do conto que é disparado e leva o leitor consigo como um trem-bala. 
 
É o contrário, por exemplo, dos contos de Sagarana, que eram contos-caravana, histórias que têm um destino mas abominam a linha reta, preferem o caminho tortuoso de quem se desvia para abastecer num oásis, visitar um vilarejo, evitar uma tempestade.