Esta é a décima-segunda estória do livro de Guimarães
Rosa (Primeiras Estórias, 1962), e
para mim é ao mesmo tempo uma das mais simples e uma das mais abstratas. Não é
um conto com enredo movimentado, mas por outro lado o que acontece nele é
descrito com muita clareza. Não aparece aqui o humor rosiano, tão presente em
outros itens deste volume. A invenção verbal, aqui, é mais contida. A estória
toda é contada meio que à distância.
E é muito simples: o tio Manuel Antonio (chamado “Tio
Man’Antônio”) é um típico fazendeiro de meia-idade, sisudo, severo, casado e
pai de filhas, administrador de terras, servos e gado. Pela descrição do
narrador, “podia ter sido o velho
rei ou o príncipe mais moço, nas futuras
histórias de fadas”.
O detalhe original está neste adjetivo “futuras”,
implicando que mesmo neste estágio da História todas as histórias de fadas
ainda não foram inventadas; e quem sabe até algumas venham a ser concebidas
tendo como heróis as pessoas de hoje, os costumes de hoje. Quem pode enxergar o
daqui a mil anos?
Existe algo, nesse patriarca solene, do famoso vaqueiro
Manuelzão, e do Iô Liodoro protagonista da noveleta “Buriti” (em Corpo de Baile, 1956), aquele sertanejo
sólido, imponente e reservado. Diz o narrador que Tio Man’Antonio “se curvava, de um jeito, para entrar, como
se a elevada porta fosse acanhada”.
Era um contemplador silente da natureza, desde...
...os cimos – onde a montanha abre asas – e as infernas grotas,
abismáticas, profundíssimas. Tanto contemplava-as, feito se, a elas, algo,
algum modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança e expiação,
sacrifícios, esforços – à flor. Seria, por isso, um dia topasse, ao favorável,
pelo tributo gratos, o Rei-dos-Montes ou o Rei-das-Grotas – que de tudo há e
tudo a gente encontra?”
A vida corre em voz baixa, e acontece uma tragédia.
“Sua mulher, Liduína, então morreu, quase de repente, no entrecorte de
um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta.”
A morte da esposa parece quebrar um encanto na vida de
Tio Man’Antonio. Abatido, ele passa a percorrer a casa, verificando cômodo por
cômodo, enquanto as filhas preparam a defunta. Manda abrir todas as portas e
janelas, fica contemplando a paisagem:
“ele pegava a paisagem pelas costas: as sombras das grotas e a montanha
prodigiosa, a vanecer-se, sobre asas.”
Tem início um afastamento maior de tudo: “Ele, por detrás de si mesmo, pondo-se de
parte, em ambíguos âmbitos e momentos, como se a vida fosse ocultável; não o
conheceriam através de figuras.” É como se a partir daquele fato a vida
deles tivesse dobrado uma esquina, quebrado rumo numa direção inesperada, o que
faz uma das filhas perguntar:
– Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá,
para a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?
E a curiosa resposta do velho lacônica, é apenas: “ – Faz de conta, minha filha... Faz de
conta...”
Ele dá início então a um vasto projeto de “limpa” da mata
que cerca a fazenda. Comendando a multidão de empregados:
“ele guiava-os, muito cometido, pelos sabidos melhores meios e fins,
engenheiro e fazedor, varão de tantas partes, associava com ele, dava coragem”.
Árvores, arbustos, tudo vai caindo e sendo abatido pelas
foices e machados.
Uma das filhas, vendo aquela devastação, pergunta-lhe se
aquilo não era “pecar contra a saudade?” Mas
quando a limpa se acaba, ele mostra a elas o resultado: as árvores foram todas
tombadas, “mas não mais, no qual lugar,
que aquelas que Tia Liduína em vida preferira amar – seus bens de alegria!”
É como se o viúvo quisesse manter forte a presença da falecida,
poupando as árvores que ela preferia:
“a vistosa sapucaia formidável, a sambaíba sertaneja à borda da
sorocaba, e, para fevereiro-março e junho-julho, sem folhas, sendo-se só de
flores, a barriguda rósea e a paineira purpúrea-quase-rubra, magnificentes,
respectivas. Outras, outras.”
Há uma espécie de resgate do feminino no ato de poupar
essas “árvores fêmeas” mediante o trabalho insano e atiçado de muitos homens no
eito.
Aí vem, outro golpe do acaso, porque ao ordenar esse
processo Tio Man’Antonio
“sem querer também profetizara, nos negócios, e fora adivinho. Porque
subiu, na ocasião, considerável, de repente, o preço do gado, os fazendeiros
todos querendo adquirir mais bois e arrumar e aumentar seus pastos. Tio
Man’Antonio, então, daquele solerte jeito, acertara tão em pleno, passando-lhes
à frente e sem nenhum alarde.”
É o azar dos sortudos, a impossibilidade de perder que
persegue os condenados à vitória. Lembra a lenda do rei Polícrates, tão rico
que a certa altura começava a temer um castigo do céu e para aplacar os deuses
atira ao mar seu anel de diamante mais valioso. No dia seguinte, ao sentar-se
para almoçar, abre um peixe e encontra no seu ventre o anel que retorna.
Enriquecido, o fazendeiro propõe às filhas uma festança
no dia de aniversário da finada Tia Liduína. A festa acontece, rapazes
comparecem, as filhas noivam, casam, vão embora, e fica o velho viúvo a sós com
sua fortuna, sua fazenda e suas lembranças. Está velho. É cheio de cacoetes;
tem um gesto maquinal “que era o de como
se largasse tudo de suas mãos, qualquer objeto”.
É um gesto simbólico ou profético, porque o que o
patriarca faz daí em diante é retalhar as terras que possui e doá-las aos seus
empregados, que o narrador descreve como
“seus muitos, descalços servos, pretos, brancos, mulatos, pardos,
leguelhés prequetés, enxadeiros, vaqueiros e camaradas”.
O que move o velho a agir assim? A falta de sentido da
vida depois de perder a esposa e de permitir que as filhas seguissem vidas
próprias?
O gesto meio brusco de dar as terras aos trabalhadores lembra a crise
final do industrial do filme Teorema (1968)
de Pier Paolo Pasolini, que após uma relação sexual com um conhecido doa sua
fábrica aos operários, arranca as próprias roupas e sai gritando nu pelo
deserto.
("Teorema")
Só que ele não está louco ou delirante, pelo contrário,
conta para as filhas que vendeu as terras e manda dinheiro farto para todas
elas, e ainda por cima deixa documentos justificando juridicamente tudo que
fez, para que seus atos não sejam contestados:
“parecia adivinhar o de que seus ex-servidores e ora companheiros
pudessem ver-se acusados, pelo que, mais tarde, em rubro serão, viria
grandemente a suceder, que se verá.”
O que vem a suceder é que depois disso Tio Man’Antonio
morre quietamente:
“Morreu, como se por um furo de agulha um fio. Morreu; fez de conta.
Neste ponto, acharam-no, na rede, no quarto menor, sozinho de amigo ou amor –
transitoriador – príncipe e só, criatura do mundo”.
O velho é vagaroso mas implacável em seu propósito, que
parece ser o de despir-se das posses, despojar-se dos poderes, largar mão de
tudo que fosse material e que o prendesse à vida. Não por desespero, pode-se
supor: por algum tipo de convicção íntima de que a vida consiste em acumular e
distribuir, em montanhas e vazios.
“ele fazia, alta e serena, fortemente, o não-fazer-nada, acertando-se
ao vazio, à redesimportância, e pensava o que pensava.”
Não acho absurdo ver nisso uma trajetória meio budista,
um percurso rumo ao apagamento do ego, da pessoa, da auto-imagem, um esvair-se
tranquilo na ausência de si mesmo.
Ou a busca de um equilíbrio entre os extremos da vida, como há os extremos dos espaços, usando as montanhas para preencher as grutas:
"Em termos gerais, haveria uma mor justiça; mister seria. Se o paiol limpo se deve de, para as grandes colheitas: como a metade pede o todo e o vazio chama o cheio."
E esse processo culmina quando, na noite em que está
sendo velado, “já requiescante”, na
sala grande da casa, há choros, velas, toques de sino, mas à noitinha irrompe
não se sabe como um incêndio feroz que rapidamente toma conta de tudo, consome
a casa e o defunto dentro dela, como numa pira funerária oriental,
“derramados, em raio de légua, pelo ar, fogo, faúlhas e restos, por
pirambeiras, gargantas e cavernas, como se, esplendidissimamente, tão vã e
vagalhã, sobre asas, a montanha inteira ardesse”.
Nesse sacrifício final (o “rubro serão” anunciado), montanha e grotas recebem o fogo, e a
montanha é de novo comparada a uma ave que se ergue em “asas” para o céu.
“Nada e a Nossa Condição” não guarda as surpresas ou as
reviravoltas fantásticas de outros contos da coletânea. É como uma parábola de
homem rico que dá tudo aos pobres, um tema tão frequente na literatura popular.
E ao mesmo tempo é, bem tipicamente de Rosa, uma narrativa de fatos diáfanos,
luminosos, nitidamente compreensíveis – mas que guarda no seu centro um
mistério, o mistério de motivação íntima daquele personagem.
Ele perde tudo, ele se livra de tudo, ele distribui tudo,
e no fim ele destrói tudo, e nunca sabermos o que sentiu nem o que pensou.
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