quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

4788) Primeiras Estórias: "Nada e a Nossa Condição" (27.1.2022)



 
Esta é a décima-segunda estória do livro de Guimarães Rosa (Primeiras Estórias, 1962), e para mim é ao mesmo tempo uma das mais simples e uma das mais abstratas. Não é um conto com enredo movimentado, mas por outro lado o que acontece nele é descrito com muita clareza. Não aparece aqui o humor rosiano, tão presente em outros itens deste volume. A invenção verbal, aqui, é mais contida. A estória toda é contada meio que à distância.
 
E é muito simples: o tio Manuel Antonio (chamado “Tio Man’Antônio”) é um típico fazendeiro de meia-idade, sisudo, severo, casado e pai de filhas, administrador de terras, servos e gado. Pela descrição do narrador, “podia ter sido o velho rei  ou o príncipe mais moço, nas futuras histórias de fadas”.
 
O detalhe original está neste adjetivo “futuras”, implicando que mesmo neste estágio da História todas as histórias de fadas ainda não foram inventadas; e quem sabe até algumas venham a ser concebidas tendo como heróis as pessoas de hoje, os costumes de hoje. Quem pode enxergar o daqui a mil anos?



Existe algo, nesse patriarca solene, do famoso vaqueiro Manuelzão, e do Iô Liodoro protagonista da noveleta “Buriti” (em Corpo de Baile, 1956), aquele sertanejo sólido, imponente e reservado. Diz o narrador que Tio Man’Antonio “se curvava, de um jeito, para entrar, como se a elevada porta fosse acanhada”.
 
Era um contemplador silente da natureza, desde...
 
...os cimos – onde a montanha abre asas – e as infernas grotas, abismáticas, profundíssimas. Tanto contemplava-as, feito se, a elas, algo, algum modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança e expiação, sacrifícios, esforços – à flor. Seria, por isso, um dia topasse, ao favorável, pelo tributo gratos, o Rei-dos-Montes ou o Rei-das-Grotas – que de tudo há e tudo a gente encontra?”
 
A vida corre em voz baixa, e acontece uma tragédia.
 
“Sua mulher, Liduína, então morreu, quase de repente, no entrecorte de um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta.”
 
A morte da esposa parece quebrar um encanto na vida de Tio Man’Antonio. Abatido, ele passa a percorrer a casa, verificando cômodo por cômodo, enquanto as filhas preparam a defunta. Manda abrir todas as portas e janelas, fica contemplando a paisagem:
 
“ele pegava a paisagem pelas costas: as sombras das grotas e a montanha prodigiosa, a vanecer-se, sobre asas.”

 
Tem início um afastamento maior de tudo: “Ele, por detrás de si mesmo, pondo-se de parte, em ambíguos âmbitos e momentos, como se a vida fosse ocultável; não o conheceriam através de figuras.” É como se a partir daquele fato a vida deles tivesse dobrado uma esquina, quebrado rumo numa direção inesperada, o que faz uma das filhas perguntar:
 
– Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá, para a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?
 
E a curiosa resposta do velho lacônica, é apenas: “ – Faz de conta, minha filha... Faz de conta...”
 
Ele dá início então a um vasto projeto de “limpa” da mata que cerca a fazenda. Comendando a multidão de empregados:
 
“ele guiava-os, muito cometido, pelos sabidos melhores meios e fins, engenheiro e fazedor, varão de tantas partes, associava com ele, dava coragem”.
 
Árvores, arbustos, tudo vai caindo e sendo abatido pelas foices e machados.
 
Uma das filhas, vendo aquela devastação, pergunta-lhe se aquilo não era “pecar contra a saudade?” Mas quando a limpa se acaba, ele mostra a elas o resultado: as árvores foram todas tombadas, “mas não mais, no qual lugar, que aquelas que Tia Liduína em vida preferira amar – seus bens de alegria!”
 
É como se o viúvo quisesse manter forte a presença da falecida, poupando as árvores que ela preferia:
 
“a vistosa sapucaia formidável, a sambaíba sertaneja à borda da sorocaba, e, para fevereiro-março e junho-julho, sem folhas, sendo-se só de flores, a barriguda rósea e a paineira purpúrea-quase-rubra, magnificentes, respectivas. Outras, outras.”
 
Há uma espécie de resgate do feminino no ato de poupar essas “árvores fêmeas” mediante o trabalho insano e atiçado de muitos homens no eito.
 
Aí vem, outro golpe do acaso, porque ao ordenar esse processo Tio Man’Antonio
 
“sem querer também profetizara, nos negócios, e fora adivinho. Porque subiu, na ocasião, considerável, de repente, o preço do gado, os fazendeiros todos querendo adquirir mais bois e arrumar e aumentar seus pastos. Tio Man’Antonio, então, daquele solerte jeito, acertara tão em pleno, passando-lhes à frente e sem nenhum alarde.”
 
É o azar dos sortudos, a impossibilidade de perder que persegue os condenados à vitória. Lembra a lenda do rei Polícrates, tão rico que a certa altura começava a temer um castigo do céu e para aplacar os deuses atira ao mar seu anel de diamante mais valioso. No dia seguinte, ao sentar-se para almoçar, abre um peixe e encontra no seu ventre o anel que retorna.
 
Enriquecido, o fazendeiro propõe às filhas uma festança no dia de aniversário da finada Tia Liduína. A festa acontece, rapazes comparecem, as filhas noivam, casam, vão embora, e fica o velho viúvo a sós com sua fortuna, sua fazenda e suas lembranças. Está velho. É cheio de cacoetes; tem um gesto maquinal “que era o de como se largasse tudo de suas mãos, qualquer objeto”.
 
É um gesto simbólico ou profético, porque o que o patriarca faz daí em diante é retalhar as terras que possui e doá-las aos seus empregados, que o narrador descreve como
 
“seus muitos, descalços servos, pretos, brancos, mulatos, pardos, leguelhés prequetés, enxadeiros, vaqueiros e camaradas”.
 
O que move o velho a agir assim? A falta de sentido da vida depois de perder a esposa e de permitir que as filhas seguissem vidas próprias? 

O gesto meio brusco de dar as terras aos trabalhadores lembra a crise final do industrial do filme Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini, que após uma relação sexual com um conhecido doa sua fábrica aos operários, arranca as próprias roupas e sai gritando nu pelo deserto.



("Teorema")
 
Só que ele não está louco ou delirante, pelo contrário, conta para as filhas que vendeu as terras e manda dinheiro farto para todas elas, e ainda por cima deixa documentos justificando juridicamente tudo que fez, para que seus atos não sejam contestados:
 
“parecia adivinhar o de que seus ex-servidores e ora companheiros pudessem ver-se acusados, pelo que, mais tarde, em rubro serão, viria grandemente a suceder, que se verá.”
 
O que vem a suceder é que depois disso Tio Man’Antonio morre quietamente:
 
“Morreu, como se por um furo de agulha um fio. Morreu; fez de conta. Neste ponto, acharam-no, na rede, no quarto menor, sozinho de amigo ou amor – transitoriador – príncipe e só, criatura do mundo”.
 
O velho é vagaroso mas implacável em seu propósito, que parece ser o de despir-se das posses, despojar-se dos poderes, largar mão de tudo que fosse material e que o prendesse à vida. Não por desespero, pode-se supor: por algum tipo de convicção íntima de que a vida consiste em acumular e distribuir, em montanhas e vazios.



E assim, diz o narrador,
 
“ele fazia, alta e serena, fortemente, o não-fazer-nada, acertando-se ao vazio, à redesimportância, e pensava o que pensava.”
 
Não acho absurdo ver nisso uma trajetória meio budista, um percurso rumo ao apagamento do ego, da pessoa, da auto-imagem, um esvair-se tranquilo na ausência de si mesmo.

Ou a busca de um equilíbrio entre os extremos da vida, como há os extremos dos espaços, usando as montanhas para preencher as grutas:

"Em termos gerais, haveria uma mor justiça; mister seria. Se o paiol limpo se deve de, para as grandes colheitas: como a metade pede o todo e o vazio chama o cheio."
 
E esse processo culmina quando, na noite em que está sendo velado, “já requiescante”, na sala grande da casa, há choros, velas, toques de sino, mas à noitinha irrompe não se sabe como um incêndio feroz que rapidamente toma conta de tudo, consome a casa e o defunto dentro dela, como numa pira funerária oriental,
 
“derramados, em raio de légua, pelo ar, fogo, faúlhas e restos, por pirambeiras, gargantas e cavernas, como se, esplendidissimamente, tão vã e vagalhã, sobre asas, a montanha inteira ardesse”.
 
Nesse sacrifício final (o “rubro serão” anunciado), montanha e grotas recebem o fogo, e a montanha é de novo comparada a uma ave que se ergue em “asas” para o céu.
 
“Nada e a Nossa Condição” não guarda as surpresas ou as reviravoltas fantásticas de outros contos da coletânea. É como uma parábola de homem rico que dá tudo aos pobres, um tema tão frequente na literatura popular. E ao mesmo tempo é, bem tipicamente de Rosa, uma narrativa de fatos diáfanos, luminosos, nitidamente compreensíveis – mas que guarda no seu centro um mistério, o mistério de motivação íntima daquele personagem.
 
Ele perde tudo, ele se livra de tudo, ele distribui tudo, e no fim ele destrói tudo, e nunca sabermos o que sentiu nem o que pensou.










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