Cantador é uma raça que não presta. Perdoem a franqueza,
mas nem sou eu que digo, são eles mesmos que dizem uns dos outros.
É uma das classes mais solidárias e mais afetuosas que
existem. Mas ao mesmo tempo é uma das classes mais hipercríticas. Defeito
nenhum passa em branco. Cada olho é um raio-X, cada ouvido é um radar e cada
língua uma navalha.
Por maior que seja a amizade, o afeto recíproco, ninguém
está livre de levar uma chibatada sempre que for preciso. Ou mesmo não sendo.
Penso por exemplo na amizade de vida inteira que
juntou Pinto do Monteiro, o maior repentista de todos os tempos, e o impagável João Furiba, o maior contador-de-vantagem de todos os tempos. Começaram a
cantar juntos quando Ramsés II ainda era faraó, e cantam juntos até hoje em
alguma birosca celestial.
No meio deles se interpôs a cantadora Mocinha da Passira,
jovem, azougada, talentosa, valente, que nunca arredou pé na frente de homem
nenhum, quanto mais de cantador. Os dois, mais velhos, a apadrinharam; mas
sempre que um deles fazia dupla com ela, o terceiro afiava a navalha.
(Pinto do Monteiro e Mocinha da Passira)
Numa cantoria, outro violeiro, para provocar, terminou um
verso perguntando a Pinto:
(...) Ô Pinto... Me dê notícias
de Mocinha da Passira.
Pinto mandou na lata:
Se ajuntou com João Mentira,
toda metida a donzela.
Ele dizendo pro povo
que é namorado dela;
não canta ela, nem ele,
não presta ele, nem ela.
A poética dos repentistas é muito exigente, muito cheia
de regras, e eles fazem uma fiscalização tremenda uns sobre os outros, pra ver
se pegam o colega dando uma escorregada. Como a dificuldade é grande, as
escorregadas (de rima, de métrica, de assunto) são inevitáveis; todo cantador
erra, todo cantador se faz de doido, todo cantador passa um cheque-sem-fundo poético,
quando o perigo é grande.
Jorge Filó lembra um caso em que Pinto estava cantando
com outro cara (cujo nome a História misericordiosamente esqueceu) que errava o
tempo inteiro, até que desabafou no fim do verso:
(...) Cometi um erro agora
e quero ser perdoado.
Pinto era um especialista da sutileza de ser bom e ser
ruim ao mesmo tempo, e contemporizou:
Já está dissimulado;
o seu erro não se nega.
Eu vi, mas fiz que não vi
o defeito do colega,
porque quem tá se afogando
em qualquer talo se pega.
Quantas e quantas vezes, numa cantoria em residência,
onde há uma certa formalidade, diferente de cantoria de bar, que é mais
acanalhada (no bom sentido), fiquei vendo uma dupla cantar no terraço e sempre
há em volta outros cantadores que vieram olhar, e ficam vigiando cada verso e
cada rima. Parecem aqueles juízes de ginástica olímpica.
Aí um dos que estão cantando se distrai e rima, por
exemplo, “amor” com “abandonou”. A gente olha para um dos poetas que estão de
pé, em silêncio. O olho cruza. E ele franze o nariz, como quem sentiu cheiro de
cocô de gato.
Ariano Suassuna gostava de dizer: “Os melhores cantadores
são o muito bom e o muito ruim. Porque um a gente admira, e com o outro a gente
se diverte”.
Reza
a lenda que os poetas Amaro Elias e Manoel Nogueira estavam em plena cantoria,
quando Manoel de repente mudou de toada, puxando uma melodia que por algum
motivo não convinha ao companheiro.
Amaro, momentaneamente desorientado, tentou queixar-se:
Amigo Mané Nogueira,
não faça isto com “mim”,
que um colega de arte
com outro não faz assim,
pelo cálice de amargura
que Jesus Cristo... bimbim!
Percebe-se que o poeta preparou o verso para terminar dizendo: “Pelo
cálice de amargura / que Jesus Cristo bebeu!”.
Só que, quando foi cantar as primeiras linhas, percebeu que teria que
dizer “não faça isto com eu”; na pressa, tentou remendar o erro dizendo “com
mim”, e daí em diante nada mais deu certo.
(Pedro Bandeira)
Dia destes, ouvindo a notícia do falecimento do grande
Pedro Bandeira, fiquei lembrando alguns episódios. Pedro fez parte da “Viagem
dos Poetas ao Brasil”, uma caravana organizada em 1979 por Giuseppe Baccaro,
bancada pela Prefeitura de Olinda (leia-se Germano Coelho), que percorreu de
ônibus várias capitais brasileiras.
Na caravana havia umas 10 ou 12 duplas de violeiros.
Pedro Bandeira estava duplado com Otacílio Batista. Houve um dia em que,
chegando a Brasília, Baccaro conseguiu que o então Ministro da Educação e
Cultura recebesse os poetas, para a entrega oficial de um manifesto, redigido
pelo próprio Baccaro, pedindo apoio à poesia popular.
Foi selecionado um grupo de representantes, e marchamos
para o Ministério. Aguardamos num salão vasto, atapetado, com belas poltronas.
De repente abriu-se uma porta lateral, entrou o Ministro com alguns assessores,
cumprimentou todo mundo, e Pedro e Otacílio cantaram alguns versos de saudação.
Eu estava meio afastado, e ouvi Pedro abrir a sextilha
dizendo:
Esta é a caravana
da viola de madeira...
Outro cantador, atrás de mim, comentou baixinho: “A de
plástico ele deixou em casa”.
Era um erro, era um verso ruim? Não, não era, mas
cantador dá nota em tudo, confere tudo, questiona tudo. É uma vigilância social
permanente, coletiva, que pode sem dúvida produzir alguns episódios de
mesquinhez ou de maledicência, mas tem um propósito positivo: levantar o
sarrafo, aumentar o nível de exigência, alertar cada praticante para o fato de
que a cada instante o artista tem que dizer a que veio.
Em cantoria não tem aquela passada-de-pano que existe no
futebol, aquelas expressões tipo “Fulano calou os críticos...”, “Sicrano não
tem mais que provar nada pra ninguém...” Na cantoria tem que provar todo dia,
sim, e é por isso que existem cantadores de alto nível. E que de década em
década aparecem novos cantadores de alto nível. É porque o sarrafo é alto, os
parâmetros são exigentes, o olho crítico não dorme, a navalha não descansa.
4 comentários:
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