1
Sybil Leeworth, 61 anos, de Edinburgh, nunca revelou a ninguém de sua família que quando tinha oito anos viu, pela janela do banheiro, seu pai e sua tia materna Alva beijando-se e apalpando-se com avidez, no pátio traseiro de sua casa. Tinha entendimento para saber que aquilo era proibido, que era pecaminoso, e que seu pai seria capaz de tudo para impedir que sua mãe ficasse sabendo. Passou anos soltando indiretas, em geral durante as refeições, para dar a entender que sabia de tudo (mas o que era tudo? haveria alguma coisa a mais?) e que seu silêncio poderia ser comprado com roupas caras e privilégios. Seu pai, no entanto, era um homem bonachão, meio estúpido, e jamais entendeu as deixas, as insinuações, as alusões gratuitas ao afeto que certas pessoas de certas famílias nutrem por certas pessoas que as visitam de vez em quando trazendo presentes e recebendo carinhos em troca. Continuava comendo, alisando o bigode de pontas afiladas, arrotando, mastigando, com os olhos fitos em algum ponto distante da parede da sala, onde sem dúvida estava vendo as oferecidas partes íntimas de tia Alva, pensava agora Sybil, sessentona e murcha, tricotando a sós no sótão da residência do único filho casado que concordou em abrigá-la, cheia de amargura diante da própria incompetência até como chantagista.
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2
Pablo Villavieja Suárez, 58 anos, contabilista em Tarragona, é responsável há décadas pela vida financeira de seu tio Enrique Bauls, dono de três pequenas livrarias na Catalunha. Ao longo dos anos ele descobriu uma maneira engenhosa de desviar uma parte dos lucros do tio, que de três em três meses se limitava a pôr os óculos e ler por alto os relatórios enviados pelo seu sobrinho preferido. O dinheiro desviado foi de início acumulado numa conta bancária que Pablo decidiu criar para servir como fundo de emergência em qualquer situação difícil, numa União Européia regida por certa instabilidade fiscal e monetária, sendo ele um pai de família dedicado a sua esposa Mercedes e seus três filhos. Com o tempo, a ousadia o levou a criar contas paralelas e redistribuir o dinheiro, de que o tio viúvo nem precisava tanto, pois vivia apenas para o trabalho e a leitura. Uma das contas foi batizada privadamente por Pablo de “Jack in the Box”, porque se um dia o tio (ou algum fiscal que ele resolvesse nomear) descobrisse a manobra, Pablo confessaria entre lágrimas que tinha feito isto (e estaria falando a verdade) para prevenir qualquer falência do tio e surpreendê-lo com um fundo de economias do qual ele não suspeitava. Assim repassaria para o tio perplexo essa pequena fortuna da qual ele era o verdadeiro dono, e manteria para si as outras duas, uma conta numerada num banco suíço, e uma conta conjunta que mantinha em Barcelona com a radialista e micro-empresária solteira Amparo Valdés, mas essa é outra história.
Pablo Villavieja Suárez, 58 anos, contabilista em Tarragona, é responsável há décadas pela vida financeira de seu tio Enrique Bauls, dono de três pequenas livrarias na Catalunha. Ao longo dos anos ele descobriu uma maneira engenhosa de desviar uma parte dos lucros do tio, que de três em três meses se limitava a pôr os óculos e ler por alto os relatórios enviados pelo seu sobrinho preferido. O dinheiro desviado foi de início acumulado numa conta bancária que Pablo decidiu criar para servir como fundo de emergência em qualquer situação difícil, numa União Européia regida por certa instabilidade fiscal e monetária, sendo ele um pai de família dedicado a sua esposa Mercedes e seus três filhos. Com o tempo, a ousadia o levou a criar contas paralelas e redistribuir o dinheiro, de que o tio viúvo nem precisava tanto, pois vivia apenas para o trabalho e a leitura. Uma das contas foi batizada privadamente por Pablo de “Jack in the Box”, porque se um dia o tio (ou algum fiscal que ele resolvesse nomear) descobrisse a manobra, Pablo confessaria entre lágrimas que tinha feito isto (e estaria falando a verdade) para prevenir qualquer falência do tio e surpreendê-lo com um fundo de economias do qual ele não suspeitava. Assim repassaria para o tio perplexo essa pequena fortuna da qual ele era o verdadeiro dono, e manteria para si as outras duas, uma conta numerada num banco suíço, e uma conta conjunta que mantinha em Barcelona com a radialista e micro-empresária solteira Amparo Valdés, mas essa é outra história.
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3
Bert Adams, 42 anos, mecânico de automóveis em Austin (Texas), tinha uma amizade de infância com seu colega de escola Harry Fernwright, 45 anos, policial. Apesar de amigos, os dois sempre tiveram uma relação tensa, competitiva, em que (como Bert admitiu certa vez numa carta à esposa de Harry) “nós dois viemos de baixo, não conseguimos subir muito, e cada um de nós tinha que mostrar que era melhor do que alguém; o alguém mais próximo de mim sempre foi Harry, e vice-versa”. Certa noite, depois do jogo final de um campeonato de beisebol, os dois saíram para comemorar o título e tomaram um pileque homérico. Durante a bebedeira (estavam num hotel, o jogo fora em outra cidade) Harry teve um desabafo etílico e confessou ao amigo um crime que cometera há muito tempo, matando por engano uma criança, mas sem ser descoberto. Passado o pileque, Harry não lembrava do que havia falado, e Bert passou a compreender melhor certas atitudes do amigo. Aos poucos, conseguiu amenizar seus rompantes de violência. Quando Harry se aposentou por problemas de saúde e veio com a idéia (absurda para a família) de realizar trabalhos sociais no bairro onde o crime acontecera, Bert lhe deu apoio total, com argumentos genéricos, e dobrou a todos que se opuseram. Harry mudou-se para o bairro. Tornou-se um líder respeitado, ajudou a reduzir a criminalidade, serviu de mediador em conflitos dos moradores com a polícia. Bert Adams morreu num acidente de carro sem ter revelado nem mesmo a Harry o que soube durante mais de dez anos.
Bert Adams, 42 anos, mecânico de automóveis em Austin (Texas), tinha uma amizade de infância com seu colega de escola Harry Fernwright, 45 anos, policial. Apesar de amigos, os dois sempre tiveram uma relação tensa, competitiva, em que (como Bert admitiu certa vez numa carta à esposa de Harry) “nós dois viemos de baixo, não conseguimos subir muito, e cada um de nós tinha que mostrar que era melhor do que alguém; o alguém mais próximo de mim sempre foi Harry, e vice-versa”. Certa noite, depois do jogo final de um campeonato de beisebol, os dois saíram para comemorar o título e tomaram um pileque homérico. Durante a bebedeira (estavam num hotel, o jogo fora em outra cidade) Harry teve um desabafo etílico e confessou ao amigo um crime que cometera há muito tempo, matando por engano uma criança, mas sem ser descoberto. Passado o pileque, Harry não lembrava do que havia falado, e Bert passou a compreender melhor certas atitudes do amigo. Aos poucos, conseguiu amenizar seus rompantes de violência. Quando Harry se aposentou por problemas de saúde e veio com a idéia (absurda para a família) de realizar trabalhos sociais no bairro onde o crime acontecera, Bert lhe deu apoio total, com argumentos genéricos, e dobrou a todos que se opuseram. Harry mudou-se para o bairro. Tornou-se um líder respeitado, ajudou a reduzir a criminalidade, serviu de mediador em conflitos dos moradores com a polícia. Bert Adams morreu num acidente de carro sem ter revelado nem mesmo a Harry o que soube durante mais de dez anos.
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Sílvia Pizzatti, 14 anos,
magra, desajeitada, dentuça, tímida até onde se pode ser tímida, acompanhou sua
mãe, Alberta, 45 anos, enfermeira, rotunda, dentuça, expansiva até onde se pode
sê-lo, ao lançamento do livro do poeta mais famoso do país, de passagem pela
cidadezinha de vocação turística onde ambas viviam sua rotina de viúva e órfã,
sendo que D. Alberta estava nesse dia toda pruriente de expectativa, porque
semanas antes enviara ao famoso poeta o volumezinho de print-on-demand que reunia em 288 páginas todos os poemas que
escrevera, pois dizia sempre, “a poesia me arrebatou quando eu tinha dez anos e
nunca mais me permitiu pisar no chão novamente’, talvez daí seu pendor pelo
Campari e pelo cigarro sem filtro, pela companhia de solteirões recitativos e
lúbricos que lançavam olhares depreciativos mas não menos lúbricos para os
atrativos de Sílvia quando esta vinha à sala com a bandeja de canapés e uma
vontade-de-morrer que só fazia aumentar, o que se reafirmou na fila de
autógrafos ao ver a mãe dizer ao poeta que lhe mandara o livro, e em seguida a
expressão surpresa do Bardo Laureado, que tomou-lhe as mãos e elogiou os
poemas, dizendo que recebera sim, já lera tudo, e lera alguns deles várias
vezes, e que ela era um talento nato, uma nova voz na poesia do país, o que
deixou D. Alberta nos píncaros do êxtase, afastando-se com duas amigas que já a
tomavam pelos braços, apossando-se de sua celebridade, e ela esquecia para trás
a invisível Sílvia, que nesse instante viu a vigilante secretária do Bardo
cochichar alguma coisa ao seu ouvido, com certa determinação e olhares em
torno, e ouviu o poeta murmurar, meio desconcertado: “Não é ela, então... Ora,
ora, que gafe a minha...”, olhando em torno para ver se alguém percebera, e
mais uma vez não enxergando Sílvia – a um metro! – mais invisível ainda pela
vergonha absoluta; mas vejam como são os caminhos da vida, parece que aquele
elogio, que a acertou como uma bala perdida, fez alguma coisa pegar-no-tranco
no âmago da alma de D. Alberta, que daí em diante pareceu sossegar,
apaziguar-se consigo mesma, com o espelho, com a balança, dar-se por realizada
poeticamente, descartar com principesca auto-estima os antigos solteirões,
dedicar-se à casa, à enfermagem, e viver uma vida aparentemente em paz durante
os oito anos que precederam sua morte tranquila durante o sono, para tristeza infinita
mas para alívio parcial da sempre trôpega Sílvia, que não aguentava mais o peso
daquele segredo.
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4 comentários:
Muito bons...
Demais!
Ótimos!
Admiráveis desfiar de cada situação, e em todas quase dá pra pesar
o fardo,tamanha relevância você cria pra cada segredo.
Pena que foram só quatro, cabiam mais um ou dois na minha ânsia
curiosa e prazerosa. Enfi, ducaraio.
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