Há um subgênero do romance (e do conto) policial voltado para os Crimes Impossíveis, aqueles crimes onde uma pessoa é encontrada morta num quarto trancado por dentro, ou apunhalada num campo coberto de neve onde só se veem suas próprias pegadas, ou entra num aposento vigiado pelo lado de fora, some... e não reaparece.
Para mim, os grandes mestres desse tipo de história são
John Dickson Carr (que também se assinava “Carter Dickson”), Ellery Queen, S.
S. Van Dine, Edward D. Hoch e outros.
São histórias tão intrincadas e cheias de detalhes
insólitos que Jorge Luís Borges, numa conferência famosa (em Cinco Visões Pessoais, Editora da UnB,
1987, 2ª. ed., trad. Maria Rosinda Ramos da Silva), classifica esse tipo de
história no interior da literatura fantástica.
"Fantástica" por que? De acordo com o meu critério pessoal,
essas histórias não seriam fantásticas porque nelas tudo que acontece é
fisicamente possível, nenhuma lei da física é violada, etc. Mas são histórias fundamentadas em
circunstâncias altamente improváveis. Criminosos engendram assassinatos
utilizando mecanismos bizarros, contando com coincidências extraordinárias,
recorrendo a métodos quase surrealistas para ocultar seus movimentos e suas
motivações.
E o detetive deve ter a capacidade imaginativa de
entender esses procedimentos, para chegar à solução. Não são histórias
sobrenaturais. São histórias insólitas.
A possibilidade de que pessoas se comportassem daquele jeito na “vida real” é
praticamente zero, seja na execução do crime, na ocultação de pistas, na
criação de um falso álibi.
É uma espécie de “literatura Rube Goldberg”, imitando a
técnica do desenhista norte-americano, de engenhocas complicadíssimas para
produzir efeitos banais:
A graça desse tipo de história é que se trata de um mistério colocado em termos de problema, que deve ser analisado,
entendido e decifrado. Diz Borges:
Tudo isso já se encontra nesse primeiro conto policial escrito por
[Edgar Allan] Poe – que não sabia estar dando início a um novo gênero –
intitulado The Murders of the Rue Morgue. Poe não queria que o gênero
policial fosse algo realista; queria que fosse um gênero intelectual, um gênero
fantástico, se vocês preferirem, mas um gênero fantástico fruto da
inteligência, não apenas da imaginação. De ambas, as coisas, naturalmente, mas,
sobretudo, da inteligência. (p. 35-36)
É uma literatura da “Realidade vs. Ilusão” – a Realidade é
o crime, o modo como foi praticado, o seu autor; a Ilusão são os detalhes
complicadores com que o assassino busca disfarçar a própria identidade e o
método que utilizou.
E dentro desse subgênero existe outro, mais fascinante
ainda: os romances policiais envolvendo truques de magia-de-palco. Sim, porque
existe uma imensa afinidade de espírito entre o ilusionismo de um mágico e o de um
criminoso (um criminoso desse gênero em particular). Existe uma semelhança
enorme de métodos entre um cara que serra uma mulher ao meio diante de uma
audiência, e um sujeito que mata outro dentro de um quarto trancado por dentro
(ou que dá a todos a impressão de que foi isto que aconteceu).
Um pioneiro notável desse subgênero foi Maxwell
Grant (pseudônimo de Walter Gibson), o famoso autor de The Shadow. Grant foi durante muito tempo assistente de mágicos
famosos dos EUA, como O Grande Blackstone, e transferiu essa experiência para os contos
sobre Norgil o Mágico, que ele publicou na década de 1930 na revista Crime Busters. Cada história de Norgil
envolvia um pequeno crime ou mistério que era produzido (ou solucionado)
mediante o conhecimento de algum truque de mágica.
Clayton Rawson, um discípulo de J. D. Carr, era mais
complexo em concepção e superior em execução. Seu “mágico-detetive” era O
Grande Merlini, que apareceu em clássicos como Death From a Top Hat (1938), The Footprints
in the Ceiling (1939), e outros. Seu conto “From Another World”, publicado
no Ellery Queen’s Mystery Magazine
(junho 1948) é de uma rara simplicidade e engenhosidade.
Li agora há pouco Black
Aura (1974) de John Sladek (1937-2000). Este autor, que também produziu
ficção científica de boa qualidade, escreveu também um volumoso tratado de
desmascaramento de cultos de pseudo-ciência, The New Apocrypha – a Guide to Strange Science and Occult Beliefs (1978),
onde ele mete o chanfalho em muitos casos de paranormalidade, mediunidade,
curas “quânticas”, discos voadores, moto-perpétuo e outras coisas. Faz um bom
par com o clássico de Martin Gardner, Mitos
e Crendices em Nome da Ciência (1957).
O romance de Sladek tem como detetive um sujeito
divertidamente excêntrico chamado Thackery Phin, um norte-americano vivendo em
Londres, que se dedica a desmascarar um grupo de pessoas que cultuam uma médium famosa. Assassinatos e desaparecimentos impossíveis começam a
acontecer, e ele acaba se envolvendo.
O mais interessante, do ponto de vista literário, é que o
livro tem uma estrutura bem clássica, bem anos 1900 ou 1930, ajudado pela
ambientação londrina; mas os personagens incluem figuras bem familiares ao leitor da década de 1970: um cantor pop assediado pelas
fãs, indivíduos viciados em heroína, atores e técnicos de TV, e outros.
Thackery Phin não deixa de fazer citações, alusões e
homenagens aos clássicos do gênero (Doyle, Chesterton, etc.) e deslinda com
habilidade (e alguns lances de efeito teatral) o mistério. O livro vale pela
escrita de Sladek, sempre interessante e perceptiva quanto a pequenos detalhes
de ambientação e psicologia, não necessariamente (ao contrário de alguns
autores desse gênero) os detalhes que terão importância na solução do caso.
É uma maneira de, tornando mais realista e mais
verossímil o ambiente e as pessoas, tornar ainda mais fantástico o “crime
impossível” quando acontece, e mais convincente a solução que no fim é
apresentada.