A gente fala dos gêneros literários usando uma espécie de jargão, mas esse jargão precisa ser aferido de vez em quando.
Pulp fiction é
uma expressão que muita gente ainda associa apenas ao gênero policial, por
causa do filme de Tarantino. Para um leitor de ficção científica é mais que
óbvio que uma pulp fiction de FC existe, existiu; é inevitável.
Mais do que os gêneros, em si, há um aspecto da pulp
fiction que eu acho importante, é o fato de ser em grande parte uma literatura
feita de improviso. Não o improviso do repente musical ou poético, que se dá ao
longo de segundos. Mas o improviso do romancista de folhetim do século 19, que
toda semana tinha que entregar uma pilha de folhas manuscritas.
Não dava para ficar ajeitando, ficar corrigindo. O que
era improvisado, ficava.
É um improviso parecido com os dos cordelistas
nordestinos comentando fatos da guerra, da política ou dos esportes. Correndo
atrás da notícia, uns. Correndo atrás de uma história para entregar no dia tal,
para outros, e assim por diante.
No caso da pulp fiction,
era um modo de produção profissional, americanamente metódico. Isaac Asimov
orgulhava-se de escrever uma história inteira direto na máquina, sem rascunhos,
criando à medida que datilografava, colocava “The End” no final, punha tudo num
envelope e mandava para uma revista. “Só revisava,” disse ele a certa altura,
“se todas as revistas conhecidas devolvessem aquela história. Só então
compensava mexer nela.”
Tem alguns escritores da FC e do romance policial dos anos
1930-40-50 que são verdadeiras máquinas de escrever ambulantes, produzindo
histórias em linha de montagem incessante, e de vez em quando acertando com uma
história realmente bem bolada.
Max Brand, autor de tantos westerns, teria escrito
publicado cerca de 45 milhões de palavras, segundo uma avaliação de Frank
Gruber (em seu livro de memórias The Pulp Jungle, 1967).
Quando ele concordou com esse cálculo, Gruber perguntou-lhe como conseguia. E
ele:
– Você consegue escrever catorze páginas por dia?
Gruber diz que já tinha escrito muito mais do que aquilo,
num dia só. Mas era só de vez em quando. E Max:
– Pois o x do problema é esse. Você tem que fazer catorze
páginas todos os dias, sem exceção,
não importa que dia seja. No fim de um ano inteiro, isso chegará perto de um
milhão e meio de palavras.
(Os norte-americanos sempre comparam a extensão dos seus
textos em termos de palavras, não de laudas ou páginas. Isso já vem desde o tempo da máquina de
escrever e do linotipo, não tem nada a ver com informática.)
Gruber, um escritor de thrillers competentes, diz a certa
altura: “Em 1935 eu escrevi cinquenta e sete histórias e vendi cinquenta e
cinco. Cerca de vinte das histórias tinham cinco mil palavras ou menos. As
demais eram mais longas, de tal modo que a média de palavras entre elas era bem
superior a cinco mil.”
Para ter uma idéia do que significam cinco mil palavras,
pode-se comparar com este texto, que em sua última revisão está com [1.343] palavras no total.
Frank Gruber (1904-1969) publicou dezenas de títulos e
foi uma das metralhadoras mais prolíficas de sua geração. Ele tem muitas séries
policiais e de faroeste. A que mais li foi a dos livros sobre uma dupla de
caras espertos que se metem em situações perigosas, Johnny Fletcher e Sam
Cragg. Vários deles saíram pela Colecção Vampiro (Livros do Brasil, Lisboa).
Gruber diz em suas memórias:
Ao longo da minha vida profissional eu vendi umas quatrocentas histórias.
A maior parte delas foi escrita entre os anos de 1934 e 1941. De 1941 em
diante, escrevi apenas umas cinco ou seis histórias curtas, menores do que um
romance.
Já publiquei cinquenta e três romances.
Eu preferiria ter que escrever vinte e quatro contos curtos do que escrever
um romance – do ponto de vista da resistência física e mental necessárias para
isso. Com uma história, você não está na companhia dela mais do que algumas
horas, ou até minutos, até chegar ao fim da tarefa.
Um romance é um esforço interminável. Você pensa até cair exausto. Você
escreve até estar a ponto de gritar. Você pára. Você descansa. Mas você tem que voltar pra lá de novo. Tem
que retomar os fios da narrativa, reacender o entusiasmo, recapturar o
sentimento. (p. 176)
Mas Frank Gruber é um grão de areia a mais nessa praia
infinita dos datilografadores compulsivos. Robert Silverberg (atualmente com 83
anos) conta um pouco dessa produção em série num ensaio (“Sounding Brass,
Tinkling Cymbal”) incluído numa antologia importante, Hells Cartographers (ed. Brian Aldiss & Harry Harrison, 1975).
Diz Silverberg, referindo-se à sua fase inicial de
contista precoce para os pulp magazines:
[Randall] Garrett me disse que os editores tinham mais probabilidade de
comprar uma história do um autor com quem já tivessem batido algum papo do que
de estranhos que faziam contato unicamente por via postal. E era verdade! Vendi
cinco histórias em agosto de 1955, três em setembro, três em outubro, seis em
novembro e nove em dezembro.
Algumas histórias vendem logo nas primeiras tentativas;
outras percorrem às vezes o circuito completo de todas as possibilidades de
publicação. Mas quando o escritor acerta a mão com o gosto, o repertório, as
expectativas do público, as histórias começam a ser publicadas. Um ano depois
da fase descrita acima, Silverberg já podia fazer uma contagem diferente:
Eu escrevia com espantosa rapidez, tendo vendido quinze histórias em
junho de 1956, vinte no mês seguinte, catorze (inclusive uma serialização em
três partes, escrita com Garrett, para publicar em Astounding SF), no mês seguinte.
“No fim de 1956,” avalia Silverberg, ou seja, quando ele
contava 21 anos, “eu já contabilizava mais de um milhão de palavras
publicadas.” Antes dos 30 anos, já era
um homem rico, e comprou a mansão onde tinha morado o prefeito de Nova York,
Fiorello La Guardia.
Ambos os sistemas conseguem funcionar: a literatura
pitoresca e rápida, e a literatura introspectiva e lenta.
Alguns escritores, hoje célebres, trabalharam na
indústria, viveram de literatura, e têm
alturas literárias impressionantes, lado a lado com páginas da mais pedestre pulp fiction. É o caso de Raymond
Chandler, Philip K. Dick, H. G. Wells, Stephen King e tantos outros. O próprio
Edgar Poe era isso.
O autor profissional sabe que se vender a história que acabou
de finalizar poderá pagar um dos aluguéis atrasados, encher a geladeira de
comida, e aguardar o próximo cheque caído do céu editorial.
Sabe que o combinado no contrato foi: “Entrega texto final
dia 30”, e será entregue o texto final no dia 30, nem que a vaca tussa.
Quem escreve assim toma decisões dramatúrgicas rápidas, e
paga para ver.
Um autor é grande pelas qualidades excepcionais que tem,
não é porque “não tem defeitos”. Em outras palavras: o que o torna um grande
escritor não é propriamente o que ele faz “correto”, é o que ele faz de novo,
de diferente, de pessoal. Em diferentes planos da criação artística se
distingue o criador que apenas executa com perfeição, mas pouco dá de si mesmo.
E o criador que rompe fronteiras, desobedece códigos, comete uma porção de
erros, produz obras meio falhadas, mas no meio disso tudo abre possibilidades
de que as mentes mais certinhas jamais suspeitariam.
Seria interessante um laboratório no futuro onde
inteligências artificiais “canalizassem’ em forma de software os cacoetes
estilísticos e as ponderações filosóficas, biológicas e ideológicas do defunto
autor. James Joyce ressurgiria para reler e discutir o Ulisses, Proust para terminar Em
Busca do Tempo Perdido, Dickens para revelar o segredo de Edwin Drood,
Guimarães Rosa para checar cada sinal gráfico do seu épico sertanejo.
Se uma Inteligência Artificial começar a produzir textos
de ficção, como parece que já estão produzindo, é provável que produza um poema
ou esquete vanguardista, algum desses estilos onde quem manda é o freguês, cada
um interpreta como quiser. Duvido que o computador consiga produzir uma pulp
fiction que se possa tomar como um capítulo perdido das Espadas de Lankhmar ou das
aventuras do Sombra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário