“A Hora e Vez de
Augusto Matraga” é o derradeiro (e para muitos o melhor) conto do livro Sagarana (1946), o primeiro e
possivelmente o mais acessível dos livros do autor.
Tenho falado nestes
meus comentários sobre Sagarana que
um dos temas gerais do livro, expresso numa epígrafe na sua abertura, é o da
“ida e volta”. Está na epígrafe que diz “for
a walk and back again”. Que exprime, de certo modo, o retorno mental de
Rosa ao seu sertão de origem, mesmo morando longe.
O conto “Matraga”
conta a história da “morte” simbólica de um valentão e sua “ressurreição” como
herói. É a história de um homem que é uma coisa, transforma-se em outra, e no
fim volta a ser o que era, mas valorizado por essa transformação.
Se algum professor
precisar de um exemplo literário para explicar o conceito de “tese / antítese /
síntese”, este conto serve como um dedo numa luva.
Já na primeira fase do
conto (tese), ficamos sabendo que Matraga (que na verdade chama-se “nhô”
Augusto Esteves) é menino mimado, agroboy que cresceu mandando e desmandando,
mas hoje tem a vida em pandarecos:
Fora assim desde
menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai pancrácio. (...)
Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais
estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas
enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando,
as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas,
como parede branca.
Este balanço ocorre na
mente de D. Dionóra, a esposa em vias de separação, por não aguentar mais as
brutalidades dele. Ela vai morar com um pretendente, e no mesmo dia os capangas
de Nhô Augusto se passam para o lado do Major Consilva, velho inimigo da
família. E a quem cabe ordenar a surra homérica, e o castigo final:
“Arrastem pra longe,
para fora das minhas terras... Marquem a ferro, depois matem.”
Assim é feito, e Nhô
Augusto, os ossos todos partidos a pauladas, recebe o ferro em brasa “...com a marca de gado do Major – que soía
ser um triângulo dentro de uma circunferência – e imprimiram-na, com chiado,
chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto”.
Dado por morto após
rolar numa ribanceira, ele é recolhido por um casal de pretos num casebre ali
perto.
Nhô Augusto, dias
depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as pernas metidas
em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda
estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. As
moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também
partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes, e a
queimadura da marca do ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado imenso.
Começa então a
convalescença física e a purificação moral. Depois de desmoralizado o valentão
e derrotado o brabo, ficou somente o Nhô Augusto de dentro, fraco e infeliz. O
processo dura “muitos meses, porque os
ossos tomavam tempo para se ajuntar, e a fratura exposta criara bicheira.”
E essa reconstrução
íntima, essa antítese, se dá após uma depressão profunda em que Nhô Augusto
chora, lamenta, se abate, se envergonha de tudo que fez. E volta a rezar.
Volta, porque, como dizia um tio velho de sua esposa, “quem criou Nhô Augusto foi a
avó... Queria o menino pra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e
ladainha”.
Nhô Augusto, já
sarado, resolve pegar o casal de pretos velhos e ir morar com eles num
ranchozinho que tinha num lugar distante, onde ninguém o conhecia.
E assim se passaram
pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem
pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma história inventada, e não é um
caso acontecido, não senhor.
(...)
E, pois, foi por aí,
dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e até hoje mui
lembrada pelo povinho do Tombador.
Este trecho é outra
virada-de-esquina decisiva no conto, e o autor a anuncia com a devida pompa.
Porque nos parágrafos seguintes ele descreve como aquele vilarejozinho
esquecido onde Nhô Augusto vivia encafuado chega de passagem um bando de
jagunços armados, tendo à frente
...o arranca-toco, o
treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o
parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.
O encontro com esse
chefe jagunço (que tem algo do encontro entre Riobaldo e Zé Bebelo no Grande Sertão) vai soprar na alma de Nhô
Augusto as brasas dormidas do fogo guerreiro. Ele convida os jagunços à casa
modesta onde vive com os pretos velhos, serve comida, obsequia, e entre uma
conversa e outro Joãozinho Bem-Bem descobre só de olhar que quem está ali na
frente é um dos seus.
É nesse trecho da
história que surge a famosa “Cantiga Brava”, musicada por Geraldo Vandré:
O terreiro lá de casa
não se varre com
vassoura:
varre com ponta de
sabre
bala de
metralhadora...
Despedem-se, e partem.
E com isto começa a
surgir das ruínas de Nhô Augusto Esteves o novo Augusto Matraga. Este sobrenome,
aliás, abre e fecha o conto como um par de parênteses: só aparece na primeira
frase do conto, e depois no final.
O nome matraga é geralmente comparado com o
substantivo matraca, que é aquela
peça de madeira ruidosa e sacolejante com que se faz barulho em certas
procissões; é também um pássaro. Como pássaro, acaba me lembrando as maitacas, ave migratória e barulhenta
que, revoando por cima da cabeça de Nhô Augusto numa manhã linda, anos depois
de sua provação e ordálio, parecem dizer-lhe: “Isto aqui terminou, agora é
preciso partir”.
É um momento de
epifania do conto, um momento de anunciação e ruptura.
Mas afinal as chuvas
cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu
o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu
acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e
um desperdício de verdes cá embaixo – a manhã mais bonita que ele já pudera
ver.
Ele sente o chamado do
mundo, despede-se do casal de velhos, prepara um jumentinho e se faz na estrada.
Como em tantas histórias de Rosa, seguem-se encontros rápidos, passageiros,
pitorescos. Até que Nhô Augusto chega ao arraial do Rala-Coco, e descobre que
quem está arranchado ali é Joãozinho Bem-Bem com seu bando.
Acontece o reencontro,
amistoso, respeitoso. E mais na frente, minutos depois, o confronto, quando
Joãozinho Bem-Bem, para vingar a morte de um dos seus homens, autoriza morte e
estupro contra uma família local. E Nhô Augusto:
— Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem,
é fácil... Mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto...
Este conto é um dos
grandes momentos épicos da obra de Guimarães Rosa, pela simplicidade de meios e
pela vagarosa maturação do caráter do personagem principal. Um processo de
superposição de camadas de experiências, de pensamentos, de situações, que
somente o formato da noveleta proporciona. Não se conta uma história como esta
no formato que o autor viria a usar depois em Tutaméia.
(As imagens são do filme A hora e vez de Augusto Matraga, Roberto Santos, 1966)
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