sexta-feira, 25 de maio de 2018

4350) O cosmos absurdista de Robert Sheckley (25.5.2018)



Já escrevi neste blog (principalmente aqui) sobre os momentos philipkdickianos, aqueles quando a gente tem a impressão de que a película a que chamamos realidade se rompeu, e o Mundo Como Ele Verdadeiramente É revelou-se através da fenda, da luminosa rachadura.

Em Philip K. Dick, o sujeito vê uma barraca de refrigerantes sumir à sua frente e ser substituída por um papelzinho onde está registrado: barraca de refrigerantes. Ou então pega num objeto e o contato deste o transporta fugazmente para um universo paralelo onde quem ganhou a guerra foi outro país.

Falando no jargão atual: os momentos philipkdickianos são o que hoje chamamos de “erros da Matrix”, com sua imensa variedade.

Algumas décadas atrás eu ainda tinha lido pouca coisa de P. K. Dick, e a nossa turma chamava esses momentos de momentos sheckleyanos. O universo de Robert Sheckley (1928-2005) é assim, afeito a essas rupturas.

Dimension of Miracles, seu livro publicado em 1968, é um romance curto, episódico, que não lembra um romance denso de FC levada a sério, e sim aquelas novelas de peripécias sucessivas como as Viagens de Gulliver ou o Cândido de Voltaire ou o Asno de Ouro de Apuleio.

Um norte-americano médio chamado Carmody é abduzido por alienígenas de seu apartamento em Nova York e transportado para um ambiente futurista e megalomaníaco, repleto de estruturas vertiginosas. Carmody é uma espécie de James Stewart filosofante, um "Average Joe"qualquer, longe de ser um sujeito brilhante ou um erudito, mas com certa fluência conceitual. E esse sujeito de repente é jogado numa situação que exige o máximo de seu raio racionalizante.


O Mensageiro que o arrebatou pergunta-lhe, quando chegam o local de destino:

– Gostou do nosso Centro Galáctico?
– É bem impressionante – disse Carmody.
– Imagino que sim, – disse o Mensageiro, desdenhosamente. – Foi construído de propósito para ser impressionante. Pelo meu gosto pessoal, é parecido demais com qualquer outro centro galáctico. A arquitetura, observe bem, é exatamente o mais previsível: neo-ciclopeano, um estilo preferido por governos em geral, despido de imperativos estéticos, planejado unicamente para impressionar o contribuinte.

Carmody foi trazido ali para receber um prêmio. Uma espécie de Loteria Galáctica que ele (depois de muito debate filosófico consigo mesmo) resolve aceitar. Dão-lhe o prêmio, que resulta ser um objeto falante. Carmody pede para voltar para a Terra. Os funcionários da loteria galáctica começam um jogo de empurra meio teatro-do-absurdo húngaro, cada um dizendo que o traslado de retorno dos premiados não compete ao seu departamento.

Carmody percebe que ninguém vai levá-lo de volta para a Terra muito facilmente, e talvez pela primeira vez na vida ele crie coragem para tomar uma série de decisões.


(Sheckley)

Sheckley é um entre muitos autores que conseguem fazer um humor absurdista porque em tese não se sentem obrigados a obedecer a nenhuma regra da ficção tradicional. A diversão deles todos é usar o banco-de-dados da grande cultura com a mesma sem-cerimônia e intimidade afetiva com que a grande cultura usa as mitologias de outros povos, por exemplo.

Carmody, como qualquer personagem sheckleyano, é jogado nas situações mais absurdistas e de algum modo consegue convencer a si mesmo que não está doido, e de que aquilo que acabou de acontecer não é impossível.

Como em quadrinhos de ficção científica, Moebius, por exemplo, para a gente ver que aquilo passa longe de um romance que quer ser “levado a sério”. Seu rigor é o da fábula, não o dos enredos aristotélicos. Se o personagem está numa cidade estranha e sofre a perseguição de um inimigo implacável, que importa o formato do planeta, a língua que se fala?


Carmody sai de universo afora, recorrendo a “agenciadores” cósmicos que prometem-lhe um retorno seguro através de algum mecanismo claudicante. Carmody negocia, paga, perde, ganha, salta de universo em universo buscando sua Terra de origem. Tem algo de Métal Hurlant essa sucessão de aventuras, que nos induz a imaginar uma sucessão de ilustradores diferentes, a cada novo universo onde vai parar o instável herói.

Carmody é um herói sheckleyano típico, tanto quando são heróis dickianos típicos Joe Chip ou Ragle Gumm. Aquele sujeito rigorosamente mediano, mas com certa leitura, que de repente se flagra catapultado para o absurdo e o caos...

Carmody é um personagem dos anos 1960 no quanto que fala, questiona, propõe, desmente, conserta, confirma. É um bom argumentador quando está falando consigo mesmo e sopesando hipóteses, mas o Prêmio lhe responde à altura, e se revela uma criatura morfomutante, e de uma maneira bem quadrinhesca. Num capítulo é um guarda-chuva, em outro é uma cobra enroscada no pescoço de Carmody.

O Prêmio debate filosoficamente com Carmody, chamando-o de mon vieux. É um avatarzinho que mais adiante revela-se um pouco Google, um pouco Robô Simpático, um pouco avatar cibernético capaz de um bom nível de replicação verbal. (Poderiam ser chamados de Treplicantes, porque tudo com eles tem réplica e tréplica.)

Se alguém está achando esse universo parecido não apenas com Philip K. Dick mas também com Douglas Adams, tem toda razão. Numa entrevista à revista Locus (setembro 2003) Sheckley disse que Douglas Adams (que veio bem depois) sempre citava a obra dele como uma referência. De fato, se Sheckley é primo de Dick, é uma espécie de tio de Adams, que tem seu humor próprio e soube dar sua versão britânica ao gênero Peripécias Rocambolescas Em Estranhos Habitats. (Com discussão filosófica, seja em que nível for.)

O livro de Sheckley pode ser comparado de modo interessante com The Star Kings (Guerra na Galáxia, em Portugal) de Edmond Hamilton. Em ambos um barnabé novaiorquino é arrebatado para viagens estonteantes e perigosas por outros planetas. No livro de Hamilton (também traduzido como O Rei das Estrelas, Ed. Sabiá) ele ganha a batalha contra um império galáctico e retorna para seu escritoriozinho onde aguarda ser promovido a chefe de seção.


The Star Kings, com seu protagonista sheckleyano John Gordon, é de 1949. Uma daquelas aventuras entusiasmantes de arregalar os olhos do leitor adolescente, com algum mumbo-jumbo para explicar como funciona a maquinaria extraterrestre, inclusive o Disruptor, a arma proibida, o Canhão do Fim do Mundo. É uma space-opera de vinte anos atrás contada com uma imaginação visual e uma segurança literária que os autores de 1929 estavam começando a desenvolver. O filme parece um sonho com final doce-amargo.

Dimension of Miracles (1968) não parece um sonho, e sim uma viagem de LSD onde no primeiro umbral transposto o Viajante percebe que o Mundo Real no qual acreditara até então era uma mera contrafação, um simulacro grotesco, apenas um entre milhões de mundos possíveis, e nem de longe o mais interessante.


Sheckley já teve algumas obras traduzidas no Brasil. A que li na época em que foi lançada é esta, Inalterado Por Mãos Humanas, da Brasiliense (1970). É seu livro de estréia, de 1954. Tem ótimas histórias, inclusive “Seventh Victim”, que foi filmada por Elio Petri como A Décima Vítima.


 






2 comentários:

Anônimo disse...

Sobre o livro: por um lado, acho que é isso que está se chamando atualmente de “auto-ficção”: uma obra de ficção onde o próprio autor aparece como personagem. Comentei com um amigo meu: “Não sei por que esse alarde todo, porque isso já vem pelo menos desde os contos de Borges.” Ele respondeu: “Pelo menos desde a Divina Comédia.”

E já que ele foi citado aqui, Apuleio também é personagem de "O asno de ouro"...

Paulo Rafael disse...

Valeu Braulio, vou procurar esses livros de Sheckley.