Já escrevi neste blog (principalmente aqui) sobre os
momentos philipkdickianos, aqueles quando a gente tem a impressão de que a película
a que chamamos realidade se rompeu, e o Mundo Como Ele Verdadeiramente É
revelou-se através da fenda, da luminosa rachadura.
Em Philip K. Dick, o sujeito vê uma barraca de refrigerantes sumir
à sua frente e ser substituída por um papelzinho onde está registrado: barraca de refrigerantes. Ou então pega
num objeto e o contato deste o transporta fugazmente para um universo paralelo
onde quem ganhou a guerra foi outro país.
Falando no jargão atual: os momentos philipkdickianos são o que
hoje chamamos de “erros da Matrix”, com sua imensa variedade.
Algumas décadas atrás eu ainda tinha lido pouca coisa de P. K.
Dick, e a nossa turma chamava esses momentos de momentos sheckleyanos. O universo
de Robert Sheckley (1928-2005) é assim, afeito a essas rupturas.
Dimension
of Miracles, seu livro publicado em 1968, é um romance curto, episódico,
que não lembra um romance denso de FC levada a sério, e sim aquelas novelas de
peripécias sucessivas como as Viagens de
Gulliver ou o Cândido de Voltaire
ou o Asno de Ouro de Apuleio.
Um norte-americano médio chamado Carmody é abduzido por
alienígenas de seu apartamento em Nova York e transportado para um ambiente
futurista e megalomaníaco, repleto de estruturas vertiginosas. Carmody é uma
espécie de James Stewart filosofante, um "Average Joe"qualquer, longe de ser um
sujeito brilhante ou um erudito, mas com certa fluência conceitual. E esse
sujeito de repente é jogado numa situação que exige o máximo de seu raio
racionalizante.
O Mensageiro que o arrebatou pergunta-lhe, quando chegam o local
de destino:
– Gostou do nosso Centro Galáctico?
– É bem impressionante – disse Carmody.
– Imagino que sim, – disse o Mensageiro, desdenhosamente. – Foi construído
de propósito para ser impressionante. Pelo meu gosto pessoal, é parecido demais
com qualquer outro centro galáctico. A arquitetura, observe bem, é exatamente o
mais previsível: neo-ciclopeano, um estilo preferido por governos em geral, despido
de imperativos estéticos, planejado unicamente para impressionar o
contribuinte.
Carmody foi trazido ali para receber um prêmio. Uma espécie de
Loteria Galáctica que ele (depois de muito debate filosófico consigo mesmo) resolve
aceitar. Dão-lhe o prêmio, que resulta ser um objeto falante. Carmody pede para
voltar para a Terra. Os funcionários da loteria galáctica começam um jogo de
empurra meio teatro-do-absurdo húngaro, cada um dizendo que o traslado de
retorno dos premiados não compete ao seu departamento.
Carmody percebe que ninguém vai levá-lo de volta para a Terra
muito facilmente, e talvez pela primeira vez na vida ele crie coragem para
tomar uma série de decisões.
(Sheckley)
Sheckley é um entre muitos autores que conseguem fazer um humor
absurdista porque em tese não se sentem obrigados a obedecer a nenhuma regra da
ficção tradicional. A diversão deles todos é usar o banco-de-dados da grande
cultura com a mesma sem-cerimônia e intimidade afetiva com que a grande cultura
usa as mitologias de outros povos, por exemplo.
Carmody, como qualquer personagem sheckleyano, é jogado nas
situações mais absurdistas e de algum modo consegue convencer a si mesmo que
não está doido, e de que aquilo que acabou de acontecer não é impossível.
Como em quadrinhos de ficção científica, Moebius, por exemplo,
para a gente ver que aquilo passa longe de um romance que quer ser “levado a
sério”. Seu rigor é o da fábula, não o dos enredos aristotélicos. Se o
personagem está numa cidade estranha e sofre a perseguição de um inimigo
implacável, que importa o formato do planeta, a língua que se fala?
Carmody sai de universo afora, recorrendo a “agenciadores”
cósmicos que prometem-lhe um retorno seguro através de algum mecanismo
claudicante. Carmody negocia, paga, perde, ganha, salta de universo em universo
buscando sua Terra de origem. Tem algo de Métal
Hurlant essa sucessão de aventuras, que nos induz a imaginar uma sucessão
de ilustradores diferentes, a cada novo universo onde vai parar o instável herói.
Carmody é um herói sheckleyano típico, tanto quando são heróis
dickianos típicos Joe Chip ou Ragle Gumm. Aquele sujeito rigorosamente mediano,
mas com certa leitura, que de repente se flagra catapultado para o absurdo e o
caos...
Carmody é um personagem dos anos 1960 no quanto que fala,
questiona, propõe, desmente, conserta, confirma. É um bom argumentador quando
está falando consigo mesmo e sopesando hipóteses, mas o Prêmio lhe responde à
altura, e se revela uma criatura morfomutante, e de uma maneira bem
quadrinhesca. Num capítulo é um guarda-chuva, em outro é uma cobra enroscada no
pescoço de Carmody.
O Prêmio debate filosoficamente com Carmody, chamando-o de mon vieux. É um avatarzinho que mais
adiante revela-se um pouco Google, um pouco Robô Simpático, um pouco avatar cibernético
capaz de um bom nível de replicação verbal. (Poderiam ser chamados de Treplicantes,
porque tudo com eles tem réplica e tréplica.)
Se alguém está achando esse universo parecido não apenas com
Philip K. Dick mas também com Douglas Adams, tem toda razão. Numa entrevista à
revista Locus (setembro 2003)
Sheckley disse que Douglas Adams (que veio bem depois) sempre citava a obra
dele como uma referência. De fato, se Sheckley é primo de Dick, é uma espécie
de tio de Adams, que tem seu humor próprio e soube dar sua versão britânica ao
gênero Peripécias Rocambolescas Em Estranhos Habitats. (Com discussão
filosófica, seja em que nível for.)
O livro de Sheckley pode ser comparado de modo interessante com The Star Kings (Guerra na Galáxia, em Portugal)
de Edmond Hamilton. Em ambos um barnabé
novaiorquino é arrebatado para viagens estonteantes e perigosas por outros
planetas. No livro de Hamilton (também traduzido como O Rei das Estrelas, Ed. Sabiá) ele ganha a batalha contra um
império galáctico e retorna para seu escritoriozinho onde aguarda ser promovido
a chefe de seção.
The Star
Kings, com seu protagonista sheckleyano John Gordon, é de 1949. Uma
daquelas aventuras entusiasmantes de arregalar os olhos do leitor adolescente,
com algum mumbo-jumbo para explicar como funciona a maquinaria extraterrestre,
inclusive o Disruptor, a arma proibida, o Canhão do Fim do Mundo. É uma
space-opera de vinte anos atrás contada com uma imaginação visual e uma
segurança literária que os autores de 1929 estavam começando a desenvolver. O
filme parece um sonho com final doce-amargo.
Dimension
of Miracles (1968) não parece um sonho, e sim uma viagem de LSD onde no
primeiro umbral transposto o Viajante percebe que o Mundo Real no qual
acreditara até então era uma mera contrafação, um simulacro grotesco, apenas um
entre milhões de mundos possíveis, e nem de longe o mais interessante.
Sheckley já teve algumas obras traduzidas no Brasil. A que li na
época em que foi lançada é esta, Inalterado
Por Mãos Humanas, da Brasiliense (1970). É seu livro de estréia, de 1954. Tem
ótimas histórias, inclusive “Seventh Victim”, que foi filmada por Elio Petri
como A Décima Vítima.
Sobre o livro: por um lado, acho que é isso que está se chamando atualmente de “auto-ficção”: uma obra de ficção onde o próprio autor aparece como personagem. Comentei com um amigo meu: “Não sei por que esse alarde todo, porque isso já vem pelo menos desde os contos de Borges.” Ele respondeu: “Pelo menos desde a Divina Comédia.”
ResponderExcluirE já que ele foi citado aqui, Apuleio também é personagem de "O asno de ouro"...
Valeu Braulio, vou procurar esses livros de Sheckley.
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