Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.
Corria o ano de 1985, 86 e eu cheguei, certa noite, no quarto-e-sala de Lenine e Anna, lá no Jardim Botânico, onde estava uma turma sentada ouvindo um disco com a atenção de quem escuta um holograma de Hari Seldon.
Não era: era Rain
Dogs, o disco de um desconhecido chamado Tom Waits, que Alex Madureira
advertiu logo de cara: “É a sua cara, B. Tavares”. E era.
Link para o disco:
Eu tenho uma relação engraçada com o rock, porque para
mim o rock seria uma espécie de síntese entre as festas de rua de New Orleans e
a tecnologia da Nasa, ou seja, depois de uma fagulha como essa não há fogo que
não pegue. Fausto Fawcett costuma dizer que por dentro de todo Jetson existe um
Flintstone, e para mim o rock é isso, distorção elétrica e bombos tribais.
Tom Waits tinha uma dimensão a mais, um viés numa direção
harmônica e cançonetista que sem deixar de ser tipicamente norte-americana me
toca como uma coisa muito próxima de certa música brasileira. É rock, mas é um
rock da Lapa, um rock Praça Tiradentes, um rock com perfume de lupanar, não para
grandes multidões, mas para pequenos salões com pista de dança e palquinho
mambembe.
Boa parte das canções de Rain Dogs são acompanhadas por uma espécie de bandinha roufenha,
desafinada, com sopros, cordas e sanfonas, como se fosse aquilo uma meia-dúzia
de músicos que tocam pela bebida e não por um cachê, e que depois de acabada a
bebida naquele botequim eles descem do palco, enfileirados e cambaleantes, e
saem à rua, às 3 da madrugada, sob neve e vento frio, com um Hermeto Paschoal
meio catacego a guiá-los, e lá vão eles tocando, bradando impropérios, aos
escorregões, dando a volta ao quarteirão e se encaminhando por sensibilidade
telepática rumo ao penúltimo puteiro ainda aberto.
E a guitarra. A guitarra está para o rock assim como a
espaçonave está para a ficção científica. É uma espécie de senha, de password, uma espécie de “pra entrar
aqui tem que saber o que é isso”, mas muita gente confunde os sinais e pensa
que vai abrir uma porta para um lugar onde só existem guitarras (ou um lugar
onde só existem espaçonaves).
Isso é um erro. O rock não é uma instrumentação. O rock é
um estado de espírito. (Não, por favor, não me deixem repetir essa platitude
tão constrangedora. Esse clichê é a coisa menos rock do mundo. Quem “é um
estado de espírito” é a canção romântico-agrícola do Brasil Central.)
O rock é um estado do corpo, uma espécie de corrente
elétrica que se projeta pela medula espinhal e se ramifica por onde quer que
haja neurônios e outras partículas equivalentes.
Daí que me parece um desperdício total não utilizar no
rock instrumentos tão cheios de possibilidades quanto o bombardino, o xilofone,
as maracas, o trombone de vara, o bandoneon, o clavicórdio, o berimbau-de-boca,
o cajón, o clarinete, a tuba... E vou
parar por aqui, vocês já captaram a idéia; senão este parágrafo vai ficar
parecendo aqueles trechos do “Cara de Bronze” onde Guimarães Rosa despejou
miliduzentos nomes de ervas e arbustos mineiros.
Daí que uma das minhas primeiras bandas de rock
preferidas tenha sido The Band – em parte pelo fortíssimo trio
guitarra-baixo-bateria formado por Robbie Robertson, Rick Danko e Levon Helm,
mas em grande parte também pelas iluminuras sonoras proporcionadas pelos sopros
e teclados de Garth Hudson e Richard Manuel.
Esse tempero timbrístico se enriqueceu com o rock
jazzeado do Blood, Sweat & Tears, mas o crescimento da música soul nos anos 1970 foi puxando tudo cada
vez mais para uma música eletrificada para grandes bailes. E não era isso. Eu
queria ouvir uma coisa meio cabaré berlinense nos anos 1930, uma coisa com
pegada roqueira mas com uma injeção poderosa de music-hall, de café concerto. E letras de expressionismo poético
informado pelo Dadaísmo dos anos 1910 e pelo pop dos anos 1950. Um rock que
tivesse sido alimentado com canções de Brecht & Kurt Weill.
Tom Waits, na primeira audição de Rain Dogs, me trouxe de volta essas sonoridades, e me agasalhou
quentinho o coração com aquela surpreendente voz de um Louis Armstrong redneck.
Tinha guitarra? Tinha sim senhor. Um tal de Marc Ribot
que, sabiamente, em vez de tentar emular a ululação lancinante de um Clapton ou
um Jimmy Page, ficava pontilhando umas notinhas dissonantes, secas, cristalinas.
Uns solos-de-acompanhamento iguaizinhos um bordado feito no camarim por uma
cantora meio doidona cujos pontos acompanham a linha riscada sem nunca se
cravar em cima dela mas sem perder-lhe o rumo.
Rain Dogs tem
uma porção de ritmos que eu mal e mal reconheço – diria até que tem polca, tem
mazurca, tem valsa? Tem rock?
Algumas canções são desabafos truculentos, canção de
marinheiro esbravejante, como “Cemetery Polka”, “Singapore”, “Rain Dogs”.
Outras são semiboleros à luz-negra no Recife Velho, como “Jockey Full of
Bourbon”, pra balançar os quadris, ou “Hang Down Your Head”, pra fungar
agarradinho. Ou então uma marcha fúnebre em dia de chuva para um garimpeiro de
Serra Pelada, como “Diamonds & Gold”.
Sim, tem uma seresta feita por um violonista e um
sanfoneiro ao pé de uma escada-de-incêndio numa madrugada num beco onde ninguém
escuta, como “Time”. Tem um monólogo noturno de Philip Marlowe, fumando à
janela do escritório enquanto espera o telefone tocar (“9th & Hennepin”).
É uma poética suja de sarjeta, com olho para tipos
sociais captados com um nome-de-guerra e dois traços meio caricaturais, como
nos versos de Aldir Blanc ou Itamar Assumpção. Imagens que seriam surrealismo
puro se não evocassem de cara os quadrinhos urbanos-FC de Alan Moore ou Warren
Ellis. Waits é um poeta que bebeu tanto quanto Dylan nas fontes brechtianas da
decadência metropolitana, não a decadência dândi dos granfinos que cruzam a
madrugada em busca de sensações novas, mas a dos boêmios de bolso furado para
quem a madrugada é um globo-da-morte onde basta estar ligado e seguir o fluxo, e
tudo vai dar certo.
E voltando àquele capítulo inicial: na época acabamos
formando (Lenine, Lula Queiroga, Ivan Santos e eu) uma banda conceitual
intitulada “Wolf Gang” – pouco tempo antes, Amadeus
de Milos Forman tinha sido o grande sucesso no cinema, e todo mundo danou-se a
escutar Mozart.
Passamos meses ensaiando, nunca subimos num palco (falei
que era uma banda conceitual), mas meia dúzia de músicas foram compostas, entre
elas “Mais Além” (gravada depois por Lenine, além de Ney Matogrosso e Rhana).
Que de início pretendia ser um plágio de “Clap Hands” de Waits, mas depois,
como todo rock, acabou encontrando um caminho próprio. Pra vocês verem as
coisas como são.
Um comentário:
Braulio eu sou seu fã e , de vez em quando, visito seu maravilhoso blog. Devoto de Tom Waits como sou, amei esse histórico post. É isso aí e mais um pouco, até. Belo texto!
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