quarta-feira, 31 de maio de 2017

4239) O Desespero Precoce (31.5.2017)



Existe um tipo especial de tragédia que nos faz sofrer ainda mais vividamente, seja uma tragédia da ficção ou uma da vida real. É aquela tragédia que só aconteceu por um triz, que teve tudo (ou pelo menos uma grande possibilidade) de ser evitada, mas que por um pequeno detalhe acabou acontecendo.

Diferentemente daquelas tragédias gregas em que o Universo e o Olimpo em peso parecem conspirar para a infelicidade de um personagem, estas outras tragédias doem ainda mais porque se devem a uma besteira, um detalhe, àquilo que o jagunço Riobaldo, de Guimarães Rosa, chamava “o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos”.

O telefone tocou com a mensagem salvadora, mas não havia ninguém para atender. O socorro chegou, mas não deu mais tempo. Um parafuso qualquer se soltou, e o terrível acidente aconteceu. Uma frase foi ouvida casualmente, e daí em diante vidas foram desgraçadas. A pessoa perdeu um voo por alguns minutos, e foi reencaminhada para o voo fatal. São tantas as possibilidades.

Uma destas, que lembro de vez em quando, é a que chamo de O Desespero Precoce. É quando em função de um problema grave ou de uma catástrofe o personagem se deixa abater por ela, sem saber que ela poderia ser cancelada se ele pelo menos tivesse tido, diante desse problema inicial, um pouco mais de paciência, de serenidade, de cabeça fria.

Um exemplo clássico é o do Romeu e Julieta de Shakespeare. Frei Lourenço, querendo ajudar na fuga dos jovens, sugere a Julieta tomar um narcótico e ser dada como morta, para despertar depois de 24 horas. Fazem isso. Julieta é pranteada, e colocada no sepulcro da família, enquanto Frei Lourenço manda alguém avisar Romeu do plano. O aviso não chega a Romeu: chega a notícia (de conhecimento geral) de que Julieta morreu. Quando ele vai ao sepulcro e a vê em estado meio cataléptico, ele se desespera e se mata.

Esse é o elemento trágico: o Desespero Precoce. Se Romeu tivesse ficado ali se lamentando durante mais umas horinhas, a namorada iria despertar, lépida e fagueira, e os dois seriam felizes para sempre. Mas Romeu reage apressadamente ao primeiro sinal negativo do Destino, e se mata. Fico imaginando um milhão de platéias ansiosas erguendo milhões de braços para o palco e gritando: “Não se mate! Ela está viva!”. O Destino é um dramaturgo cruel.

Há um versinho atribuído a Piet Hein (1905-1996) que diz (o original é em  dinamarquês; achei uma versão em inglês na web):

Losing one glove is certainly painful, 
but nothing compared to the pain 
of losing one, throwing away the other, 
and finding the first one again.

Conheço esta quadra desde pequeno, sob esta forma (muito bem traduzida, aliás):

Perder uma luva é uma dor profunda,
mas não se compara à dor pungente,
de perder essa luva, jogar fora a segunda,
e encontrar a primeira novamente.

É um mito persistente em nossa memória cultural.

Reza outra lenda que quando Teseu partiu para enfrentar o Minotauro no Labirinto de Creta, seu navio usava velas negras; ele prometeu ao seu pai, o rei Egeu, que se voltasse vitorioso as trocaria por velas brancas. Teseu derrotou o Minotauro, mas na comemoração ele e os marinheiros devem ter tomado tanta cerveja que esqueceram de trocar as velas. O rei, ao avistar de longe o navio se aproximando com velas pretas, teve o famoso acesso de Desespero Precoce e jogou-se no mar, morrendo afogado. (Ariano Suassuna usou uma variante deste episódio em seu romance Fernando e Isaura, de 1956).

Penso nessas coisas sempre que leio alguma coisa de ou sobre Walter Benjamin (1892-1940), um filósofo que conheço pouco mas que escreveu textos memoráveis sobre literatura. Benjamin era judeu, e durante a II Guerra tentou fugir da França invadida, para escapar à perseguição nazista. Chegou à Catalunha, de onde esperava seguir para Portugal e dali para os EUA.

Benjamin foi detido na fronteira com um grupo de fugitivos, e ali recebeu a péssima notícia de que o governo espanhol iria repatriar todos eles de volta para a França, para serem entregues aos nazistas. Abatido, exausto, ele se suicidou na noite de 25 de setembro. No dia seguinte, no meio do tumulto da guerra, o grupo de que fazia parte teve seu acesso liberado, e chegou a Lisboa no dia 30.

Romeu só faz falta a Julieta, um rei grego a mais não faz falta a ninguém, mas perder um autor como Walter Benjamin aos 48 anos de idade é algo pra fazer a gente sentir na carne a tragédia do Desespero Precoce. Dá vontade de morrer também.

Existe remédio contra essa síndrome? De que maneira reagir ao primeiro sinal de que não há mais esperanças, de que está tudo acabado? O único contraexemplo que me ocorre é o de Anthony Burgess, o autor de Laranja Mecânica.

O episódio é meio controvertido, porque ele costumava fantasiar muito a própria biografia. Mas consta que Burgess trabalhava no Serviço Colonial inglês na Malásia, e em 1959 foi dispensado, ao receber um diagnóstico de câncer terminal. O escritor ficou apavorado, entre outras coisas pela perspectiva de deixar a família passando necessidades. E danou-se a trabalhar.

Reza a lenda que Burgess escreveu cinco romances ao longo do ano de 1960, e em 1964 tinha concluído um total de onze livros, entre eles o famoso A Clockwork Orange, e enquanto isso nada de câncer. Ele podia ter pulado de um prédio, não é mesmo? Mas ao invés de ceder ao Desespero Precoce o nosso amigo sentou no teclado e mandou brasa. Só foi morrer, coitado, em 1993, mais de trinta anos depois da sentença de morte proferida pela medicina.

Seu caso não é o único, pois grande parte da obra do chileno Roberto Bolaño, o autor de Os Detetives Selvagens e de 2666, foi escrita após o diagnóstico de uma doença grave, da qual acabou morrendo mesmo, mas bem depois do previsto, e não sem produzir uma quantidade enorme de livros para garantir o leite das crianças.

Não sei bem como batizar esse impulso; talvez a gente possa chamá-lo de Teimosia Esperançosa, ou a Persistência Obstinada. Não salva a vida de ninguém, mas dá, para um jogo que parecia perdido, a chance de ir para uma prorrogação. E numa prorrogação tudo pode acontecer, inclusive o jogo não acabar.