quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

3987) A civilização do olho (3.12.2015)




Num artigo de 1931 sobre fotografia, Walter Benjamin dizia: 

“Sob o efeito dos deslocamentos de poder, como os que hoje estão iminentes, aperfeiçoar e tornar mais exato o processo de captar traços fisionômicos pode converter-se numa necessidade vital. Quer sejamos de direita ou de esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos de onde viermos. Por outro lado, temos também que olhar os outros”. 

É de certa forma a extrapolação sensata dos esboços de “Big Brother” que já surgiam na época do texto. 

É a época da foto, do documento, do passaporte, do salvo-conduto, do nada consta. E a das impressões digitais, e depois a do chip biométrico, do exame de fundo de retina, do DNA.

Isto é surpreendente? Não para quem se torna capaz de extrapolar situações sociais futuras com alguma verossimilhança, como alguns escritores conseguem. A Benjamin basta observar meia dúzia de elos de uma corrente para intuir até onde essa corrente pode se estender no futuro. 

Com a fotografia, não só a arte avançava, mas também a ciência. No mesmo espírito estava o físico Arago, citado pelo próprio Benjamin, que discursava assim em 1839: 

“Quando os inventores de um novo instrumento o aplicam à observação da natureza, o que eles esperavam da descoberta é sempre uma pequena fração das descobertas sucessivas, em cuja origem está o instrumento.”

A frase de Benjamin sobre ser visto e olhar os outros lembra esses quarteirões residenciais onde praticamente toda a calçada e todo o asfalto estão na área de cobertura de alguma câmara em algum ponto dali. 

Não sei se é ballardiano demais imaginar um condomínio onde qualquer morador, da TV de sua sala, pudesse sintonizar o que estava sendo transmitido por todas as câmeras de segurança do seu prédio, ou da vizinhança (com autorização). 

Daria um bom gancho para um romance policial, se todos os suspeitos dispusessem desse acesso; para checar álibis, etc.

Uma reação “romântica” a essa vigilância dos flashes é o filme “noir”, onde os rostos estão sempre semiocultos e os ambientes sempre na penumbra ou então são uma treva cortada por uma lâmina de luz. Ninguém vê nada com clareza. 

Falei no cinema mas o romance policial equivalente também tem esse clima meio expressionista, de coisas vistas apenas pela metade, ou pela sombra, ou pelo reflexo. Cornell Woolrich tem uma série de romances com as palavras “Black” ou “Dark”. Um levantamento das descrições dos personagens dos romances “noir” talvez revelasse a incidência reiterada de expressões como “com o rosto oculto pela sombra”, etc. 

Um mundo de incerteza e de matéria escura, o contrário do mundo de hoje, berrante, narcísico, escrachado, e onde todos querem ser reconhecidos.




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