quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

3397) "Click, Enter e Play" (16.1.2014)




“Minha primeira revista literária foi na Paraíba. Eram os anos 1950, mas chegavam muitos contos pelo correio. Criamos um concurso, prêmios, sorteios.  Por dois anos a revista se pagou, com venda e alguns anúncios. Um dia chegou um conto, 20 páginas bem datilografadas, papel meio caro, paramos tudo para examinar. Se fosse bom, ocuparia o espaço de dois contos padrão. Ficaríamos com um a mais em nossa reserva, que andava escassa.

“Li. Era meio americanizado demais. Rapaz entra na aeronáutica, vai para a guerra a contragosto, no final é morto por um desertor. Mas se passava no Brasil, era bem escrita, pedi a leitura ao saudoso Domiciano Eiras. Ele ligou no outro dia. Tinha gostado, achou as paisagens da ilha deserta o máximo, os piratas sensacionais, mas preferia que “no final ele e a imperatriz ficassem juntos”.  Eu tinha pressa, desliguei intrigado. Ilha?  Imperatriz?

“Misael Lemos foi o terceiro a ler, e disse que era uma história cavernosa e interplanetária, com monstros bizarros que em alguns momentos o tinham assustado de verdade. Perguntei sobre o título. Ele respondeu: “Parece uma indicação técnica, das peças do tempo de Shakeapeare. ‘Click’ é o sinal dado por um contrarregra, e depois o ator entra, e atua.” Era citado na história, que era toda ela uma espécie de encenação.

“Misael mandou o conto para o escritório de Formiga, editor-chefe. Falou que a gente tinha gostado, mas não sabia se tinha entendido direito.  Na noite seguinte, foi lá, e Formiga falou: “Ambientada no Sertão do Rio do Peixe seria uma ótima história de cangaço. Gostei das perseguições, das cavalgadas.” Pousaram o texto na mesa sem discuti-lo: detiveram-se na língua do título, que Formiga dizia ser em inglês, e Misael que o título tornava-se em português em virtude daquele “e”, e as outras três palavras sendo meros estrangeirismos não digeridos.

“A campainha tocou, chegou a pizza que haviam pedido, e após o repasto os dois limparam a mesa, ensacaram o lixo, fecharam a sala e foram tomar uma. Misael disse depois que pensava no conto como um paradoxo divertido e intrigante. Formiga, envolvido com o trabalho, só tentou procurar o datiloscrito dois dias depois. Remexeu a sala uma manhã inteira até lembrar. A pizza, o lixo. O conto, seu envelope com endereço e com o nome do autor, que nenhum de nós lembrava, estava, caso existisse ainda, a caminho de algum lixão sanitário com milhões de toneladas cúbicas.

“Mas isso era nos velhos tempos, de máquina de escrever, papel carbono, estêncil, mimeógrafo, carimbo, linotipo, composição em chumbo... Hoje, com a modernidade, e principalmente com a Internet, nada disso aconteceria.”