domingo, 5 de outubro de 2014

3622) A solidez do real (5.10.2014)




Claro que o mundo tem seus aspectos hostis, desorientadores, seus momentos de perigo. Mas tem outros que não consigo definir de outra maneira que não “aconchegantes”. O mundo nos acolhe e nos protege, mesmo com a impessoalidade das estruturas prontas, em que podemos confiar para sempre. Por mais que os surrealistas ou os visionários queiram nos convencer do contrário (e eu sou sempre o primeiro a encorajá-los), o mundo ressts a tudo, é contínuo, é coerente. O mundo real tem, sim, feições confiáveis, constantes, que se repetem a cada dia.



Philip K Dick desorientou um entrevistador quando lhe revelou que o Japão não existe. Quando a gente pega um avião para Tóquio, aí sim, “eles” arrumam e produzem um Japão às pressas, pra que haja aeroporto onde a gente desembarque, ruas onde trafegue, hotel onde descanse.  A realidade, para ele, era uma cidade cenográfica, um Mega-Projac coordenado por uma Mega-Globo para nos dar a ilusão de que não existe uma Companhia maligna e lucradora comandando este circo de absurdos. (O filme Truman Show foi um vazamento, um wikileak disso.)



Imagine só se o mundo tivesse que ser rearrumado às pressas em cada amanhecer para estar novamente disponível aos nossos olhos; imagine se tudo fosse guardado à noite em imensos caixotes (como os livros num estande de feira-do-livro) para no começo do dia seguinte ser recomposto pelas mãos pressurosas de um balconista. Eu ficaria muito surpreso se, em Campina Grande, acordasse cedinho, fosse à Praça da Bandeira para resolver algum assunto, e percebesse que na pressa de rearrumar Campina eles tivessem trocado de posição o Colégio das Damas e o Correio.



Essa certeza é tão reconfortante que se torna o piso mínimo de fé de que precisamos para viver uma vida individual tão arisca, tão aleatória. Sabemos que no atravessar da rua um motoboy despirocado pode nos jogar para o Além em fração de segundo, mas em compensação a possibilidade de que um asteróide errante faça o mesmo com a Terra é bem menor.  O planeta nos sobreviverá, como sobreviveu aos dinossauros.


E na verdade não exigimos muito - nem dele, como planeta, nem da civilização. Pedimos apenas que, mesmo na falta de um propósito unificador e geral, nos sejam dados espetáculos (campeonatos de futebol, eleições, guerras) nos quais possamos projetar um senso-de-finalidade, e que, mesmo quando o resultado final nos traga a derrota, possamos achar que alguma vitória teria sido possível.  Suportaríamos até uma descoberta esmagadora como a de Truman (“o mundo é outro”), só não suportaríamos pensar que nada disto faz sentido.


Um comentário:

Anônimo disse...

O astrofísico americano David Grinspoon, que durante algum tempo pareceu o novo Carl Sagan, tem uma frase ótima sobre esse assunto: "Se a realidade é uma ilusão, ainda assim é uma ilusão de paredes bem sólidas"