(ilustração: Chelo Candia)
Parece que nunca
existiu uma amizade de fato entre esses dois grandes escritores argentinos, que
frequentemente são citados na mesma frase.
Havia quinze anos de diferença etária entre eles, e é natural que o mais
novo visse no outro o seu mestre. Ambos produziram uma literatura fantástica de
matriz urbano, cosmopolita, com inspiração literária e filosófica. Bem diferente da literatura fantástica de
matriz rural ou interiorana (Márquez, Astúrias, Rulfo, Scorza, p. ex.), com
matriz indígena e mitológica. Ambos
livrescos e um tanto tímidos, ainda assim são diferentíssimos. Cortázar um
sujeito afetuoso mas auto-suficiente, que ousou deixar a pátria e viver em
terra estranha. Borges morou com a mãe até que ela morreu, embora depois de
cego e famoso tenha corrido o mundo inteiro. (Talvez um cego se canse menos em
viagens internacionais. Nossa memória visual exige muito do processamento
central.)
Em 1956 Cortázar
estava na Índia e ao conversar sobre Borges veio-lhe a idéia para um poema, que
ele acabou publicando muito tempo depois, em seu “almanaque” A Volta ao Dia Em
Oitenta Mundos. O
título é em inglês: “The smiler with the knife under the cloak”. E diz: “Bem no meio da ensaimada /ele se
plantou e disse: Babilônia. / Muito poucos entenderam / que queria dizer o Rio
da Prata. / Quando se deram conta já era tarde, / quem detém esse potro que
galopa / de Patmos a Gotinga a meia rédea. / Começou-se a falar em vikings / no
Café Tortoni, / e isso curou a alguns de Juan Pedro Calou / e fez os fracos
adoecerem com as runas e David Hume. // Enquanto isto ele lia / romances
policiais.”
Nos comentários
que faz após o poema, Cortázar observa que só viu Borges pessoalmente “duas ou
três vezes na vida”, mas que Borges foi para a geração dele uma lição de
escrita. Mais do que temas e idéias, a literatura de Borges lhes passou a
sensação de uma lâmina afiada até o limite. Uma frase refeita dezenas de vezes,
começando longa e tortuosa, e se limando por dentro até se tornar concisa,
sonora e perfeita. Uma antítese classicista ao derramamento verbal dos
românticos.
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