domingo, 17 de agosto de 2014

3580) Borges e Cortázar (17.8.2014)





(ilustração: Chelo Candia)


Parece que nunca existiu uma amizade de fato entre esses dois grandes escritores argentinos, que frequentemente são citados na mesma frase.  Havia quinze anos de diferença etária entre eles, e é natural que o mais novo visse no outro o seu mestre. Ambos produziram uma literatura fantástica de matriz urbano, cosmopolita, com inspiração literária e filosófica.  Bem diferente da literatura fantástica de matriz rural ou interiorana (Márquez, Astúrias, Rulfo, Scorza, p. ex.), com matriz indígena e mitológica.  Ambos livrescos e um tanto tímidos, ainda assim são diferentíssimos. Cortázar um sujeito afetuoso mas auto-suficiente, que ousou deixar a pátria e viver em terra estranha. Borges morou com a mãe até que ela morreu, embora depois de cego e famoso tenha corrido o mundo inteiro. (Talvez um cego se canse menos em viagens internacionais. Nossa memória visual exige muito do processamento central.)

Em 1956 Cortázar estava na Índia e ao conversar sobre Borges veio-lhe a idéia para um poema, que ele acabou publicando muito tempo depois, em seu “almanaque” A Volta ao Dia Em Oitenta MundosO título é em inglês: “The smiler with the knife under the cloak”. E diz: “Bem no meio da ensaimada /ele se plantou e disse: Babilônia. / Muito poucos entenderam / que queria dizer o Rio da Prata. / Quando se deram conta já era tarde, / quem detém esse potro que galopa / de Patmos a Gotinga a meia rédea. / Começou-se a falar em vikings / no Café Tortoni, / e isso curou a alguns de Juan Pedro Calou / e fez os fracos adoecerem com as runas e David Hume. // Enquanto isto ele lia / romances policiais.”

Nos comentários que faz após o poema, Cortázar observa que só viu Borges pessoalmente “duas ou três vezes na vida”, mas que Borges foi para a geração dele uma lição de escrita. Mais do que temas e idéias, a literatura de Borges lhes passou a sensação de uma lâmina afiada até o limite. Uma frase refeita dezenas de vezes, começando longa e tortuosa, e se limando por dentro até se tornar concisa, sonora e perfeita. Uma antítese classicista ao derramamento verbal dos românticos.

Ambos gostavam de romances policiais, mas tinham dificuldade de escrevê-los levando-os literariamente a sério. Borges se orgulhava de “O jardim das veredas que se bifurcam”, o primeiro conto que publicou nos EUA, nas páginas do Ellery Queen’s Mistery Magazine.  Depois mandou para lá “A Morte e a Bússola”, que foi recusado (talvez por seu excesso de artificialismo), e quando produziu seu terceiro conto detetivesco (“Abenjacan, o Bokhari, morto em seu labirinto”), ele mesmo achou que aquilo mais parecia uma paródia do que qualquer outra coisa.


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