quarta-feira, 9 de julho de 2014

3546) "O Livro das Provas" (9.7.2014)



A história de detetive é chamada de “whodunit” (por girar em torno de “quem fez”, quem praticou o crime) ou “howdunit” (“como fez”, como o crime foi praticado – entram aí todas as histórias de crimes impossíveis, crimes de quarto fechado, etc.). E existe também o chamado romance policial psicológico, o “whydunit”. Por que fez? Qual a razão do crime? O que se passa no interior da mente de quem mata?

The Book of Evidence de John Banville (O Livro das Provas, Ed. Record, 2002, tradução de Maria Alice Máximo) é um romance curto e denso (220 páginas), e se apresenta como o testemunho de um criminoso, Freddie Montgomery, que se dirige ao juiz e ao júri para explicar as razões do crime que cometeu. Banville é um estilista rico em recursos, e o criminoso vai brotando de frase em frase, de parágrafo em parágrafo, numa narrativa autoexplicativa que nos deixa perplexos.

Freddie é um exemplo consumado de “narrador não-confiável”, não porque minta, mas porque, como acontece com todo narcisista, seu entendimento das coisas é deformado pelo gigantesco campo gravitacional do seu ego. “Nunca imaginei que aconteceria algo tão vulgar quanto uma investigação policial”, diz ele em plena preparação do crime.  Quando uma vítima o atrapalha um pouco, ele reclama: “Não é justo que uma coisa assim aconteça!”.

A história tem alguns aspectos improváveis, mas foi baseada em fatos reais, um crime célebre na Irlanda nos anos 1980, uma série de acontecimentos que alguém na época definiu como “grotescos, sem precedentes, bizarros e inacreditáveis”. O lado exterior dos fatos foi bastante comum; mas todos se perguntavam: “Afinal de contas, para que diabo ele fez isso tudo?”  Um desses crimes cuja gratuidade desconcerta qualquer análise. Crimes sem propósito nos fascinam. Somos capazes de entender quem mata por dinheiro, por ódio ou por ciúme, mas crimes sem razão aparente nos aterrorizam com o abismo espantoso do absurdo.

O livro de Banville é uma espécie de O Estrangeiro de Camus sem aquela aridez de xilogravura em preto e branco. Ao invés de Meursault, que quase nada diz de si mesmo, Freddie escancara seus pensamentos com volúpia diante do leitor, soterra o leitor com seu exibicionismo, sua vaidade, sua pose de dândi que acha que o mundo lhe deve tudo, suas inseguranças de menino mimado que arranca asas das moscas. Banville faz isso com uma prosa brilhante, nítida, cheia de símiles inesperados e vívidos, de revelações indiretas que nos fazem ver o assassino (e a humanidade) com receio, com pena, com revolta e com uma incômoda sensação de familiaridade. Todos nós conhecemos meia dúzia de pessoas como Freddie Montgomery.


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