Quando meu tio Fabriciano morreu, não chorei nem fiz drama,
mas talvez eu tenha sentido sua morte mais do que a viúva e os dois filhos,
para quem o velho (inválido, introvertido) era um entrave, uma sangria
financeira. Eu era o único parente que o visitava, o único que era bem aceito.
Recebi com uma surpresa formal a notícia de que ele tinha deixado para mim a
estante de livros. Lá, ninguém tinha interesse por eles, e meu tio me fizera
aquela última gentileza. Ademais, eram poucos, não mais de duzentos.
Folhear livros de um ausente é uma forma de seguir suas
pegadas pelo mundo não-linear e ilimitado das idéias. Livros lidos, relidos,
manuseados ao longo da vida. Trechos sublinhados, parágrafos inteiros
circundados por uma linha firme e intencional, traços ondeados por baixo de
termos duvidosos ou de erros de imprensa. Pequenos comentários em forma de
pontos de exclamação, interrogação; asteriscos e setas puxando correções ou
esclarecimentos.
Quando comecei a examinar seus livros preferidos uma
estranheza foi surgindo. Era como escutar meu tio falando. Naqueles livros, que
eu mal e mal conhecia, começou a surgir a voz dele, seus modos de dizer, seus
aforismos, seu vocabulário. Abrindo um romance ao acaso me defrontei com o
“viver é perigoso” que ele tanto usava ao derramar na palma da mão os
comprimidos que mantinham seu coração batendo; era estranho ver aquilo nos
lábios de um pistoleiro. Abrindo ao acaso alguns livros de poemas, espantei-me,
sem compreender como ele enfiara por entre aquelas linhas seus lugares-comuns
preferidos: “seria uma rima, não seria uma solução”; “quando a indesejada das
gentes chegar”; “não sou alegre nem triste, sou poeta”. Sim, não havia dúvida,
ali estava a voz do meu tio, sua melancolia, sua amargura, o sarcasmo com que
ele corroia as junturas do seu mundo e naufragava irônico, levando consigo os
que lhe mentiam, os que o tratavam como um traste velho.