Em muitas áreas rurais de países montanhosos existe um
costume que pode às vezes surpreender o viajante distraído. São as privadas ao
ar livre na borda de um precipício. As alturas são vertiginosas nessas regiões,
e as casas em geral dão os fundos para o abismo. Nada mais natural do que haver
uma construção feita de tábuas, em geral protegida também por cima, com o
respectivo assento, a abertura... e abaixo dela o abismo. Por uma razão
simples. Fossas sanitárias são sempre um problema, exigem um trabalho estafante
e desagradável, e podem ser fonte de doença. Para a mentalidade dos
montanheses, parece mais prático despejar de pouquinho em pouquinho aqueles
dejetos sobre centenas de metros de barranco, para que sejam ali lavados pela
chuva e bebidos pela terra. Mais prático, mais higiênico e mais lógico.
A filha de Cordwainer Smith, escritor de FC norte-americano,
conta que seu pai (que por muitos anos trabalhou na China) certa vez, em viagem
pelo interior do país, foi num desses lugares. Era uma noite de clima
agradável, e ele entrou uma privada que tinha dois assentos. Sentado num deles,
olhou de lado e viu no fundo do outro assento uma luzinhas piscando. Pensou que
fossem vagalumes. Então ouviu um ronco de motores de caminhão e percebeu que
aquelas luzes eram os faróis dos veículos, lá embaixo, subindo a serra quase
embaixo do lugar onde ele se encontrava.
Luís Buñuel conta uma memória de infância, em Molinos
(Aragón): através do buraco de uma privada assim ele viu “um falcão voando em
círculos por baixo de mim”. Ele faz uma referência a isto num dos diálogos
surrealistas do Anjo Exterminador (1962). É fácil entender que essas imagens
tenham alguma ressonância freudiana ou coisa parecida, mas o mais interessante
é que elas exprimam, a seu modo, a noção de que mesmo o pior fundo-do-poço não
é o mais fundo ainda, pode haver todo um planeta aberto lá embaixo.
Um comentário:
“Aos vivos” não há nada tão libertário quanto chegar ao fundo do posso. Quando a nossa mãe morreu antes de Maria da Penha, descobri na minha meninice que eu e meu irmão nascemos “Clandestinos” ´s, proibidos. Depois de alguns anos, fomos separados para o nosso bem, eu fui para reformatório; ele, muito novo, foi para a adoção: nenhum dos dois conseguiu seu lugar ao sol, pois já estávamos bem bronzeados.
Eu pastei pela vida comendo grana e gerando derivados de deleite, enquanto ele buscava a nossa razão. Quando nós nos víamos, ficávamos pouco tempo juntos, pois um carregava a memória dolorosa do outro. Depois de bater tanta “ cara na parede”, eu cansei e resolvi desencanar, virei advogado, ficamos anos sem nos ver.
Eu conquistei um escritório na parte nobre da cidade, a minha sala era ampla e aberta como um aquário, da minha sala eu via todos os meus subordinados trabalhando em suas ilhas, eu falava o que eles queriam ouvir: Eu sou o caminho. Em contrapartida, eles me enriqueciam. Mas, meu irmão sempre foi mais corajoso que eu, a minha secretária (amante) me interrompeu em uma reunião: “ Telefone, dizem que é do Núcleo de Custódia”.
A minha secretária estranhou, pois nunca fui advogado de porta de cadeia; eu sabia quem era. Eu segurei o telefone, como havia segurado a sua mão no hospital público quando estavam costurando as suas nádegas, ele tinha apenas onze anos de idade. Lá, fizemos o nosso pacto de existência. Eu decidi matá-lo, e desligou o telefone. Eu coloquei o telefone no gancho, como quem coloca ponto final, erámos destes meninos: “nem nasce e chora”.
O meu escritório não era mais meu, a minha vida não era mais minha, passei semanas mendigando na rua, a minha esposa me ligou tanto que o celular acabou a bateria. Até que eu tomei minha decisão: raspei a barba, entrei no presidio com a minha carteira da OAB, e na sala reservada, entreguei um bisturi ao meu irmão para ele finalmente matasse o nosso pai.
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