domingo, 10 de março de 2013

3130) Tourada (10.3.2013)





Erguem-se clarins luminosos e dourados vibrando em uníssono. Poeira cáustica como pimenta do reino. Cheiro de suor, de fumaça de cigarros, de cintos e botas de couro. As grades se erguem rangendo numa raiva de ferrugens descascadas, o peso de anos de remorso e sangue. E da escuridão brota a criatura, minotauro mutante regredido a pura fera, bufando embrutecido pelas narinas frementes, escarvando as lajes da passagem com cascos expectantes. Ele sente lá fora o bafo do mormaço ensolarado, escuta o rugido de triunfo carniceiro que o provoca; agita com raiva o pescoço, e arranca.

Massa compacta de carne, tonelada titânica, uma bala de canhão que dispara a si própria. Dois chifres sólidos como basalto, cada um deles com uma força de golpe equivalente à de um safanão de baleia azul. Por baixo deles, dois olhos miúdos de miúra enfurecido à procura de um alvo para sua última chifrada mortal. Até que ele enquadra o vulto esguio em trajes dourados, desdobrando à sua frente um borrão escarlate.

O que se segue é uma caçada, um intercurso, um balé, como um tubarão dando bote no anzol que se esquiva e negaceia. A mancha rubra da capa que se estende, se recolhe, drapeja, agita-se, roça com zombaria aquela cordilheira de músculos. O namoro entre a tempestade e o para-raios. O sol flameja cegante na espada desembainhada, uma labareda de luz pronta para fulminar.  Os gritos ficam mais ansiosos, ofensivos, como que cobrando um prazo. A lâmina. O animal. Os dois evoluem, dançam, cada qual submetido a um conjunto diferente de equações, trajetórias, impulsos, peso específico, massa inercial; pilotados em parte por si mesmos e em parte por uma inteligência esquizóide que os contrapõe um ao outro e a si mesma, como um só enxadrista que manipule as brancas e as pretas.

E de repente é como se essa mente malabarizasse não apenas os protagonistas, mas a areia, onde já esguicham os borrifos de sangue, as amuradas de madeira cobertas de cicatrizes das batalhas pretéritas, as arquibancadas repletas de figurantes de rosto indistinto vociferando em calculada desordem uma só Babel de palavrões e urros, e as cobertas de concreto, as cabines de TV, as torres dos refletores, o complexo oval de toda a arena, o bairro com uma imprevisível malha urbana, a cidade que pulsa em torno com a indiferença de um coração para com o corpo que mantém vivo.  A imagem se afasta cada vez mais, mal se vê agora o ponto cintilante da espada sanguinolenta erguida em triunfo. O menino sai clicando, desliga tudo, tira os goggles do rosto; num dos seus olhos pulsa e palpita uma besta maciça e cheia de fúria, no outro ergue-se um Zeus matador tendo na mão um raio hi-tech.



Um comentário:

João Asfora disse...

Se o Papa Ernest não é pop que seja então pop-up...