(Catryn Arno)
...e estou de volta ao ponto de partida,
ao trampolim
do Tempo que me impele
a saltar para fora desta pele
como quem larga a
roupa no banheiro.
Meu último dezembro? Ou o primeiro
noutro plano que não
este de agora?
É noite. Ruge o trânsito lá fora
nessa avenida insone que
não para
e as multidões arquejam no Saara
buscando o oásis do crédito
fácil.
E onde diabos perdi o meu palácio?
Em que bolso esqueci
o meu castelo?
Quede o meu submarino, aquele yellow,
que cruzava universos
transversais?
As alucinações sensoriais
transportaram meu corpo a outro
porto
onde um dia, não sei, voltarei morto
e encontrarei meu rosto
adormecido
num travesseiro feito do tecido
que as aranhas bordaram para
mim.
Someone tells me that life is but a dream
e a
guilhotina do despertador
decepa o sono no melhor do amor
e me projeta
nesta Distopia
em que mais queima e dói a luz do dia,
o ferro-em-brasa de
qualquer verão,
do que a treva, a ausência, o nada, o não,
o Nirvana do
zero absoluto...
Bastam só as besteiras que eu escuto
pra sonhar em viver
como um Beethoven
pois os surdos não sofrem do que ouvem
como nós, a
nadar no som alheio,
um rumor que jamais diz a que veio
mas aumenta o
volume e abaixa o nível.
Bora lá, paladinos do impossível,
combater o mau
gosto, o gosto médio!
Quero afogar em vodka este tédio,
sufocar o Medíocre
em si mesmo,
essa tela que berra à balda, a esmo,
como se fossem gralhas
coloridas.
Este ano custou-me tantas vidas...
mas eis-me aqui ao
fim de tudo, intacto,
intratável e áspero; o cacto
de Bandeira, que morre e
não se entrega.
E em dezembro retorna a luta cega
das comemorações
obrigatórias,
mil cervejas, mil risos, mil histórias,
tudo festivo como um
Facebook
onde cada usuário emprega um truque
pra divulgar o seu melhor
retrato.
Nessa luta de cão-e-gato-e-rato
não dá pra dispensar a
hipocrisia,
que não deixa de ser diplomacia,
revestida de boas intenções.
Sendo assim... tragam logo esses garçons,
o champanhe, a cerveja, os
canapés...
Que seja a vida como os cabarés
ou a buate que eu chamava
“bôite”,
onde a festa feliz virava a noite
e o álcool desmanchava o
sofrimento.
vupt! – e pronto, é Natal mais uma vez.
É hora de lembrar o que se fez,
empurrar o não-feito mais pra frente,
abraçar, receber e dar presente,
como a peça mil vezes encenada
que toda noite vem modificada
pela corrente oculta dos Acasos
visto que o Tempo não tolera atrasos
e que nossa viagem é só de ida...
Um comentário:
Um poema que, para além da beleza, contém angústia e uma argúcia rara. Amei vários trechos, como estes:
"pois os surdos não sofrem do que ouvem
como nós, a nadar no som alheio ,
um rumor que jamais diz a que veio
mas aumenta o volume e abaixa o nível."
"Este ano passou feito um momento:
vupt! – e pronto, é Natal mais uma vez.
É hora de lembrar o que se fez,
empurrar o não-feito mais pra frente,
abraçar, receber e dar presente,
como a peça mil vezes encenada
que toda noite vem modificada
pela corrente oculta dos Acasos
visto que o Tempo não tolera atrasos
e que nossa viagem é só de ida..."
Parabéns por tanta sensibilidade!
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