Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 17 de abril de 2011
2533) O enterrado vivo (17.4.2011)
Não tinham filhos e moravam no fim da rua, numa casinha antiga que não se encaixava com as casas novas, ficando como um dente-do-siso torto, afastada das demais. Seu Manuel era aposentado, passava o dia na frente da TV ou sentado no terracinho, vendo a rua. Dona Santa visitava às vezes as vizinhas, que gostavam dela e atendiam seus pedidos simples. Viviam um para o outro e pareciam não sentir falta de nada nem de ninguém.
Na rua todos lembravam o que acontecera alguns anos antes. Uma tarde, Seu Manuel caiu de bruços na sala, morto. Dona Santa correu às vizinhas, deu o alarme. Começaram as providências: alguns homens se cotizaram para comprar o caixão modesto, as mulheres ajudaram Dona Santa a preparar o morto, acender os incensos. Em pleno velório, à noite, o defunto ergueu um braço, depois ergueu o corpo e olhou em redor. Houve um Deus-nos-acuda que ainda hoje é contado e recontado na vizinhança. A verdade é que ele estava vivo. Tivera apenas um ataque de catalepsia (a palavra foi fornecida pelo médico que o examinou pós-ressurreição). Durante um ou dois anos a história foi repetida na rua. Depois, passou-se.
Nunca passou para Seu Manoel, pois vieram pesadelos em que ele despertava dentro de um caixão escuro. Acordava gemendo, com falta de ar. Depois, obrigou Dona Santa a dormir de luz acesa. E dizia: “Santinha, não me deixe ficar daquele jeito de novo. Se eu não acordar, me belisque, enfie uma agulha! Não deixe que me enterrem vivo!”. Ela enxugava os olhos, abraçava-se com ele e prometia tudo que ele quisesse. Ela também não esquecia aquela noite terrível, a despedida para sempre, e depois o horror do retorno misturado à alegria do milagre.
Até que Seu Manoel sofreu o segundo ataque, igual ao primeiro. Ela estava doente, fraca. Arrumou-o na cama, sozinha, banhou-lhe o rosto com água de hortelã. Mesmo com remorsos, acabou enfiando a agulha, mas o braço fininho do marido não reagia. Colocou o espelho diante dos lábios dele, mas lembrou que da primeira vez o vidro também não tinha ficado embaçado. Fazia café e colocava a xícara diante do seu rosto, pensando que talvez aquele cheiro, que ele gostava tanto, o despertasse.
Alguém notou que o casal não aparecia no terraço há algum tempo. Uma vizinha comentou com outra, que comentou com outra. No sábado de manhã juntaram-se e foram até lá, para ver se os velhos precisavam de alguma coisa. As janelas estavam fechadas mas elas ouviram alguém falando lá dentro. Bateram, ninguém respondeu. Empurraram, a porta abriu. Elas entraram devagar na sala, depois no corredor que levava ao quarto, e ouviram a voz de Dona Santa: “Não se preocupe não, meu véio... Que eu não vou deixar que eles lhe enterrem, vou ficar aqui do seu lado até você ficar bom”. Entraram no quarto, tapando o nariz com a mão, e a viram sentada num tamborete junto da cama, murmurando com olhos insones, segurando aquela mão que se desmanchava.