Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 13 de fevereiro de 2011
2479) Itamardito (13.2.2011)
Itamar Assumpção recusava a pecha de Maldito. Um artista maldito é em geral um sujeito que incomoda pelo que diz, pelo que faz e pelo que é; mas ao mesmo tempo nos impede de ignorá-lo. É um elemento estranho, às vezes agressivo, às vezes provocador, que coloca em xeque não somente os valores estéticos de quem está à sua volta, mas também sua paciência e seus bons modos. O Maldito inquieta, e não pode ser deletado. É como um vírus que se recusa a ser expulso e fica por ali, perturbando, e despertando o receio de que possa, de um momento para outro, fazer o mundo acabar.
O SESC lançou ano passado a “Caixa Preta”, reunião da obra completa de Itamar, com todos os discos que lançou em vida, e trabalhos inéditos que ele estava preparando quando morreu em 2003, aos 53 anos. Ouvi muito Itamar na década de 80, quando a melhor coisa na música brasileira era a chamada Vanguarda Paulista: Itamar, Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e outros. Eram artistas e grupos reunidos em torno do Teatro Lira Paulistana, de saudosa memória, que ficava em frente à Praça Benedito Calixto, em Pinheiros. (E onde eu, Fuba e Tadeu Mathias realizamos show memoráveis há 30 anos, mas aí é outra história).
A Vanguarda Paulista foi o momento mais Frank Zappa da música brasileira. Algo desse espírito semi-erudito, semi-jazzístico, semi-dadaísta subsiste hoje na obra de Tom Zé e Jards Macalé (parceiros eventuais de Itamar). Um teste prático para saber o grau de novidade de uma música é colocar o disco como fundo musical para uma conversa entre amigos, numa sala, bebendo cerveja e batendo papo. Alguns tipos de música se prestam a servir como pano de fundo para nossas conversas, produzindo um som agradável e impregnando aquele momento de um tom emocional qualquer. Não tem nada a ver com qualidade. Pode ser um jazz, uma MPB tradicional, uma sinfonia orquestral, uma bossa nova; qualquer uma pode servir como sonoridade secundária, porque não atrapalha a nossa conversa.
Na maioria das canções de Itamar, esse encanto é impossível de manter. A música quebra o tempo todo, não tem uma continuidade rítmica que possa embalar nossos pensamentos e dispensar nossa atenção. A toda hora tem um breque! A toda hora parece que os músicos se desentenderam e resolveram dar uma parada para acertar as diferenças batendo boca. E é uma música atonal, que não segue melodias fáceis, uma música que “não é bonita” e parece estar desafinando aqui, acolá.
Não, não está, mas essa estranheza fez as platéias do começo da Bossa Nova, acostumadas ao bolero e ao samba-canção, acharem que João Gilberto estava desafinando quando cantava “Samba de uma Nota Só”. Não estava. As melodias e harmonias que a Bossa Nova propunha foram sendo entendidas e assimiladas, e se transformaram num novo padrão. Não incomodam mais, e servem de trilha sonora aos nossos saraus, ouvidas por todos, escutadas por ninguém, invisíveis como o padrão geométrico do tapete que pisamos.