sábado, 2 de abril de 2011

2520) “O Homem com a Câmara” (2.4.2011)



Este filme de Dziga Vertov, exibido recentemente na TV a cabo (e que pode ser visto no YouTube, dividido em segmentos) talvez tenha inaugurado o gênero “documentário poético”, onde se juntam duas coisas aparentemente incompatíveis, o registro direto de imagens reais que ocorrem à revelia do diretor e a manipulação dessas imagens para produzir uma idéia ou emoção que vai muito além delas. O filme é basicamente um passeio pela Rússia dos anos 1920. Acho que surgiu como um subproduto ou efeito colateral do cinema de propaganda soviético, quando Lênin mandou os cineastas para a rua para documentar a construção do socialismo e mostrar como o novo regime e a industrialização acelerada estavam transformando o país para melhor. Propaganda estatal? Dirigismo da ditadura? Pode até ser, mas o fato é que todo o grande cinema russo desse tempo (Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko, etc.) foi feito às custas do Estado e com intenções propagandísticas. Dziga Vertov (1896-1954), inventor do conceito de “câmera olho”, foi o principal documentarista desse período.

O filme é uma colagem de imagens do povo russo andando na rua, trabalhando nas fábricas, divertindo-se nos parques, etc. As imagens em si têm pouca coisa de excepcional, além do fato de serem plasticamente belas, bem enquadradas, de vez em quando explorando ângulos inusitados, etc. O filme resulta da justaposição dessas imagens, e na verdade foram os russos desse período que criaram as maiores façanhas de montagem cinematográfica. Ninguém como eles sabia encadear tão bem imagens que, filmadas em lugares e épocas diferentes, por cinegrafistas diferentes que improvisavam na rua sem roteiro, pareciam feitas uma para a outra.

Há duas imagens recorrentes que para mim sintetizam o filme. Uma delas é a que lhe dá o título: o homem com a câmara, filmando no meio da rua. Porque o diretor filmou os camera-men que estavam fazendo o filme, numa metalinguagem sem nada de pretensioso ou narcisista. Vemos um carro sem capota andando numa rua, cheio de gente sorridente que olha a paisagem urbana. Um segundo depois, de outro ângulo, vemos o mesmo carro, e ao lado dele outro carro que vai na mesma velocidade, tendo em cima um tripé com uma câmara e um homem rodando a manivela: é a câmara que filmou a imagem anterior. Basta isto para nos projetar numa cadeia infinita de possibilidades e pensar que por trás de cada câmara que filma há outra que filma esta, e assim por diante. (E lembrar o verso de Fernando Pessoa: “Deus é o Homem de outro Deus maior...”).

A outra cena é a da mulher (a esposa de Vertov) na mesa de montagem, manipulando pedaços de filmes com rostos de crianças, cortando-os, pendurando-os; e em seguida vemos esses mesmos pedacinhos se animando, entrando em movimento. Existe uma poesia nisso. Talvez a melhor definição de cinéfilo seja: “Pessoa capaz de se maravilhar com o fato de que o cinema dá a ilusão de movimento através de uma sucessão de imagens paradas”.

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